terça-feira, 30 de abril de 2013

A ANTIUTOPIA ou A armadura de bronze da necessidade histórica O materialismo histórico -- A filosofia da História, de Karl Marx


Robert Misik -- (capítulo IV de: Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.

Tradução: Frank Svensson


Será que O Manifesto expressa o triunfo da vontade sobre a sociologia?


Será que Marx é, ao fim de tudo, movido por uma ética, por um sentimento e pela motivação de combater o mal e a injustiça? Formular isso dessa forma não é violar a ideia central de Marx? Isso não é matar Marx de uma vez? Nada parece estar tão em baixa cotação nos nossos dias como as motivações morais.

Mesmo os revoltados pelas injustiças, pela brutalidade da riqueza que implica miséria, reagem mal quando acusados de moralizadores. Após os distúrbios de Seattle, Davos, Gênova e Florença, Die Zeit (Hamburgo) constatou o nascimento de um novo movimento radical de esquerda; o jornal Libération (Paris) festejava a geração da justiça social. E o eterno rebelde Daniel Cohn-Bendit exortava seus verdes a não se afastarem da gération morale.

Atentemos para a palavra do moralizador: a principal motivação da nova geração de rebeldes é a indignação moral face às fotos de crianças de ventre inchado, ou mais geralmente face às injustiças sociais, julga também Dieter Rucht, professor do Centro Científico da Pesquisa Social de Berlim, que trabalha sobre os movimentos sociais de protesto.

Entre os mais dotados descobrimos uma variedade de antiquado paternalismo. Aquele que ates-ta o moralismo de outrora evidencia um pouco de condescendência. Aquele que baseia seus procedimentos sobre a moral é sujeito suspeito. Entre as características mais singulares do nosso tempo, são inúmeras as motivações morais do engajamento, do comportamento quotidiano, seja entre os amigos do imoral, seja entre os amigos da moral. Fazemos ver às pessoas moralmente indignadas que geralmente o ocultam e sofrem veladamente a indignação; de mesma forma, os adversários das pessoas moralmente indignadas creem, no mais das vezes, que sua objeção é suficiente para desembaraçarem-se das mesmas. Em todo caso, é muito raro perceberem do que se trata: qual é o mal em se portar com moral?

Se a moralidade dos motivos e dos atos éticos é tão frequentemente associada a um moralismo enfadonho, a uma simples ingenuidade, a uma simplicidade excessiva e crédula, em parte isso se explica pelos sucessos dos adeptos do capitalismo e pelos cínicos estragos das lutas de opinião. A firmeza da doutrina econômica ultraliberal em que atualmente nos banhamos contribui para o descaso da moral. Leva a conclusões inesperadas para o profano, aumentando provavelmente seu prestígio intelectual, dizia Keynes. Por exemplo: aquele que não visa senão a seu interesse pessoal ajuda melhor o desenvolvimento de uma comunidade do que o que procura sempre fazer o bem, mas só consegue fazer o mal. Como na prática esse ensinamento traduzido é reiteradamente espartano e incômodo, isso lhe dá ares de virtude.

O fato que pode servir de base a uma superestrutura lógica, gigantesca e rígida, confere-lhe beleza. Ao permitir explicar injustiças sociais e uma crueldade flagrante corno problemas inevitáveis decorrentes do progresso e fazer passar as tentativas de substituir as coisas por uma ação provavelmente mais nefasta que benéfica, esta teoria recebe uma aprovação quase geral.

Isso não esclarece completamente porque a ação baseada na moral tem gosto duvidoso, mesmo para adversários do liberalismo econômico. A depreciação da moralidade, como facilmente con-cebida, é arma privilegiada do arsenal das doutrinas ultraliberais da economia de mercado. Forçoso é constatar algo simultaneamente surpreendente e lógico: em seu menosprezo pela ação ética, eles se voltam à tradição de Marx. Tendo por consequência a certeza, compartilhada à esquerda como à direita, de que só dados objetivos são importantes, não desejos, esperanças e ilusões dos homens.

Atitude que obtém franco sucesso, a ponto de uma criança saber hoje ser preciso conhecer as realidades econômicas e ater-se a fatos. Não se ter em conta o que deseja um indivíduo e as ideias e ilusões que lhe povoam a mente tornou-se lugar-comum que quase não se põe em questão. A última e imensa certeza de nosso tempo, que de resto quase não há, é a da primazia da economia que a política não pode contrariar e só um imbecil exaltado questionaria. Ninguém ousa contestar que o mundo funciona segundo sua lógica, que é puramente econômica, impõe-se como lei da natureza e à qual nem governo, nem empresa, nem indivíduo podem evitar. Só uma pessoa bizarra pode perder tempo a dar tratos à cabeça quanto a alternativas de lógicas de desenvolvimento ou questões filosóficas ou históricas. Esse tipo de pensador está tão fora de moda quanto espíritas ou comunistas.

Os apologistas da ordem estabelecida estão vitoriosos em toda a linha. Teríamos mesmo o direito de dizer: vejam precisamente porque, admita-se o propósito do comunista italiano Antonio Gramsci, pelo centésimo aniversário de Marx, após a primeira guerra mundial: Não seremos todos marxistas? Todo mundo é um pouco marxista sem que o saiba (Écrits politiques, t.l, p. 145, Paris, Gallimard, 1981).

Isso se encaixa? Encaixa-se muito bem, lendo e sublinhando aspectos das profusas ideias de Marx. Afirmávamos que Marx desenvolveu suas teses contestando a filosofia hegeliana e a pós-hegeliana. Quando Marx decidiu acertar contas com sua antiga consciência filosófica, Hegel já estava morto havia quinze anos. Para Hegel, toda a vida era essencialmente espirito, não prática. Hoje é forçar portas abertas afirmar que a existência material e as condições de vida concretas dos homens exercem papel capital em seus projetos e objetivos de vida, nas imagens que se fazem do mundo. É banal observar que, por estar em condições de formar consciências esclarecidas, de instaurar instituições democráticas, um aparelho de Estado que funciona e um sistema de instâncias jurídicas, sociais e culturais, as sociedades devem ter atingido certo grau de desenvolvimento material e que o respeito a outrem e à lei terá grande dificuldade de se im-por, enquanto a grande maioria da população ve-geta na miséria e na fome. Isso absolutamente não era evidente à época, quando se podia filosofar livremente sobre o espirito, a consciência ou o saber, sem muito considerar o estado de evolução de uma sociedade.

Se o jovem erudito Marx foi cedo um opositor, também o foi porque o jovem rebelde Marx sabia que a revolução que se descortinava no horizonte não se faria, porque o revolucionário Marx desejava. Nosso universitário questionador não se vê em confronto somente com a filosofia especulativa, bate-se com todas as nuances de um socialismo ético e afetivo. Toda a vida abominou aqueles que assentaram o socialismo numa utopia elaborada na sua torre de marfim, que obedeceram a uma ética forte, mas desdenharam as realidades.

Aos 25 anos Marx lutou contra esses e contra os Jovens Hegelianos. As revoluções efetivamente necessitam de um elemento passivo, de uma base material, escreve ele com a arrogância incontida do debutante; acrescenta: não basta que o pensamento seja realizado, é necessário que a realidade faça pensar. (Crítica do Direito Político Hegeliano, p. 206). Aqui desponta o modo de argumentação que Marx desenvolverá no materialismo histórico. Esse materialismo não significa -- como pretendem certos adversários -- que os homens sejam essencialmente movidos por motivos materialistas, ou que o homem seja mau. Significa que o nível de produção material e constitutivo do grau de desenvolvimento da civilização de um pais. A liberação é um fato histórico, não um fato intelectual, lemos na “Ideologia Alemã”, e ela é provocada pelas condições históricas, pelo estado da indústria, da agricultura, do comércio, das relações ... (1. A. p. 22).

 Convém aqui introduzir duas categorias essenciais do marxismo: as forças produtivas e as rela-ções de produção. A noção de forças produtivas descreve o nível material geral de uma sociedade, ou seja, o nível do saber-fazer e o das invenções, o grau de tecnizacão: uma sociedade que dispõe de fábricas automatizadas e que pratica a agricultura com ajuda de grandes máquinas agrícolas e se vale de substâncias químicas atingiu um nível de desenvolvimento das forças produtivas mais elevado que uma sociedade onde o camponês aciona o arado puxado por bois ou os artesãos fabricam manualmente, com alguma ferramenta, os objetos de uso quotidiano. A noção de relação de produção descreve, ao contrário, as condições sociais nas quais se desenvolve a produção. A sociedade divide-se em homens livres e em escravos trabalhando para aqueles? Decompõe-se em uma nobreza proprietária de terras, em camponeses atados à gleba e em cidades com comerciantes livres, onde artesãos vendem os bens que produzem? Ou estamos ante uma sociedade capitalista desenvolvida, em que uns vivem do trabalho assalariado, outros de seu capital, uma sociedade marcada por generalizada produção de mercadorias e uma economia monetária?

O materialismo histórico leva a uma dupla conclusão. Primeiramente, os diferentes graus de desenvolvimento das forças produtivas correspondem (cada um) a diferentes relações de produção. A ordem social de uma sociedade, onde a grande maioria da população trabalha na agricultura, dispondo só de meios rudimentares, é o feudalismo, isso independentemente de que um critico filosófico considere a servidão boa ou má; uma economia de mercado e monetária desenvolvida, tendo produção globalizada e relações comerciais se estendendo além dos continentes se relacionará mal com uma escravatura generalizada. 0 que não quer dizer que a economia de mercado desenvolvida critica a escravatura de modo mais eficaz e duradouro, corno jamais fez uma critica humanista que invoca a dignidade de um homem nascido livre.

Em segundo lugar, homens que produzem com relações de produção e forças produtivas históricas determinadas desenvolvem essas forcas produtivas, melhoram seu saber-fazer e seus instrumentos, fazem invenc6es. Nos nichos dessa sociedade tomam lugar classes intermediarias (como comerciantes) que aportam produtos vindos de longe ou transformam os processos logísticos. Assim é que artesãos não trabalham mais só por si, para seus mestres ou para seu entorno imediato, mas igualmente para comerciantes que lhes confiam produtos para vender algures, acumulando novo capital de mercado, permitindo reorganizar o processo sobre base mais ampla. 0 grau de produtividade e a organização da produção podem continuar a se desenvolver em meio a certas relações sociais, ate que fiquem anacrônicas e a organização tradicional não mais possa satisfazer a nova modernidade. E então que nascem as tensões e os conflitos sociais. As novas classes, mais dinâmicas, revoltam-se contra as antigas classes superiores anacrônicas. Segundo nossa concepção, todos os conflitos do historia têm sua origem na contradição entre as forças produtivas e o modo de troca, formula Marx (IA. p. 60).

Marx não se ateve a aplicar a análise materialista a épocas passadas. Introduziu novo método de estudo histórico, embora sua teoria haja revolucionado também a reflexão sobre a história, até então história de grandes homens, ideias e grandes acontecimentos (afora instituições como Exército ou Igreja). A história moderna da sociedade e a sociologia atual seriam impensáveis sem a herança de Marx, que aplica sua crítica histórica materialista à sociedade em que vive e ao capitalismo.

Já vimos que desmontando o mito do Homem, Marx mudou a possibilidade de criticar de fora o capitalismo. Para ele não mais existe a utopia vinda do céu, causa da origem inicial do Homem, que se oporia ao mundo capitalista das mercadorias. Não lhe restam mais que duas possibilidades: renunciar à crítica da ordem estabelecida ou relocar a crítica para essas condições. O projeto de Marx não é acusar o capitalismo, mas expor uma análise provando que o capitalismo sempre contribuiu para sua autocrítica ativa e prática.

Efetivamente, como as formações sociais precedentes, a ordem capitalista não é mais que uma dessas relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento de suas forças produtivas (homens). À medida que o capitalismo corresponde a esse grau de evolução, é relativamente independente da vontade dos indivíduos.

Uma formação social não desaparece jamais antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas às quais possa dar livre curso... Isso porque a humanidade jamais se põe problemas que não pos-sa resolver. ("Contribuição à Critica da Economia Política", Prefácio - pp. 4-5).

Mesmo esse modo de produção atinge um ponto em que as forças produtivas não podem mais se conter dentro de seu envoltório capitalista. Este se romperá em pedaços. At hora da propriedade capitalista já soou ("O Capital", 1, 3, p. 205). É sob esta forma satírica que Marx se exprime em O Capital, uma de suas últimas obras, que prioritariamente consagrou uma análise detalhada da dinâmica econômica. Os trabalhos preliminares a estes textos remontam aos anos 1840, o grande período criativo de Marx, 1844 a 1848.

Em resumo: Marx não teve a menor intenção de conceber uma utopia. Não se tornou comunista porque desejasse o comunismo ou julgasse o capitalismo moralmente reprovável, mas teria reagido muito mal se alguém lhe fizesse tal observação. Para ele, a supressão da propriedade privada e a socialização cooperativa representam simplesmente um potencial, uma tendência da sociedade capitalista. O comunismo não é para nós nem um estado que deve ser criado, nem um ideal sob o qual a realidade deverá ser regulada, escrevem Marx e Engels em "A Ideologia Alemã". Denominamos comunismo o movimento real que abolirá o estado atual. As condições desse movimento resultam de premissas existentes (I. A. p. 33).

À diferença dos grandes utopistas, de Thomas Moore aos do socialismo primitivo, Marx sempre evitou fazer-se uma imagem da sociedade comunista. Também isso ajudou consideravelmente os doutrinários do socialismo de Estado do antigo bloco do Leste a fazer passar seu modelo social como concretização da teoria marxista. Em nenhuma parte de sua obra Marx descreve a sociedade comunista ideal, os dados concretos do socialismo real não têm a que ser comparados. Não há mais que uma passagem célebre onde Marx, que sempre respeitou sua proibição quase bíblica de cair na utopia, deixou-se levar a um breve esboço do que poderia ser a vida no comunismo. Levando em conta a divisão do trabalho em vigor no capitalismo, o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico. Diz Marx: ... enquanto que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, o que me permite a possibilidade de fazer hoje tal coisa, amanhã outra, caçar de madrugada, pescar de manhã, pastorear de tarde e fazer critica após o jantar, segundo meu bel-prazer... (I. A. p. 32). Mas não atribuamos muita importância a essa passagem, que pode hoje ser classificada como produto de uma imaginação errante.

 Quando imaginou a sociedade comunista em seu foro interior, Marx tinha em mente, esperamo-lo, uma comunidade mais desenvolvida. De qualquer modo, é mais provável que nem tenha formulado dela uma representação. Sociedade socialista não é coisa concluída, mas como todos os estados sociais deve ser entendida como coisa em perpétua transformação e reorganização, afirmou o velho Friedrich Engels muito tempo após a morte de Marx, quando alguém lhe pediu para descrever como via a sociedade futura. Seria simplesmente o produto das condições que o capitalismo abandonaria, uma vez cumprido o seu tempo. Eram condições desconhecidas de Marx e seus amigos. Estes, ao contrário, estavam convencidos de que o capitalismo era destinado a desaparecer.

A última certeza deve-se a uma das ideias herdadas do marxismo que tem suscitado inúmeras controvérsias. Gerações de exegetas de Marx e de revolucionários reunidos com seus legados examinaram milhares de páginas escritas de suas obras, virando e revirando frases e guardando na mente as passagens. As teses do materialismo histórico deixam notadamente uma questão crucial sem resposta: se as leis da dinâmica interna do capitalismo exacerbam as tensões e as contradições, conduzem necessariamente à revolução, como escreveu Marx nos Manuscritos de 1844. Essa tese do fim natural e inquestionável da dominação da classe capitalista, Marx não só formulou nesse texto de juventude, mas numa carta ao amigo Weydermeyer:

No que me concerne, não é a mim que cabe o mérito de haver descoberto a existência de classes na sociedade moderna, tão pouco da luta que movem. Historiadores burgueses haviam exposto isso bem antes de mim. A evolução histórica dessa luta de classes e dos economistas burgueses haviam descrito a anatomia econômica. O que eu trouxe de novo foi: 1° demonstrar que a existência de classes não é ligada senão a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2° que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado ("Cartas sobre O Capital", p. 59)

Para os marxistas pós-Marx há uma pesada e explosiva herança a assumir. Se o movimento real da formação da sociedade capitalista necessariamente conduz à queda da ordem burguesa e ao reino do proletariado, é de se perguntar que papel cabe aos combatentes dessa luta de classes que Marx considera motor da história. O teórico francês há pouco morto, Cornelius Castoriadis, julga que na medida em que se mantêm as afirmações essenciais da concepção materialista da história, a luta de classes não é fator à parte (A Instituição Imaginária da Sociedade. Paris. Le Seuil, 1999 p.43).

Introduzindo a noção de necessidade histórica, Marx, o teórico da liberação, faz intervir uma segunda alienação, desta vez teológica, e estabelece uma espécie de providência comunista, tendo por fatal consequência que o revolucionário não tem outra missão senão fazer triunfar a implacável necessidade com toda sua energia e sua vontade. A questão não é mais saber o que os homens querem e desejam, mas como se conscientizam e põem-se de acordo quanto ao que a história lhes encarregou: desenvolver as forças produtivas e fazer saltar as cadeias das relações de produção, quando chegar o momento.

Os indivíduos de que se trata liberar não são mais que os executantes de leis históricas independentes, ou pelo menos muito indiretamente o produto da atividade desses indivíduos. Visto assim, o proletário da luta de classes não é mais que uma marionete manipulada por essa lei do mundo. Certos críticos viram nesse raciocínio a origem do estalinismo: infelicidade! Se o proletariado não satisfizer o que lhe pede a história, será obrigado a entrar na armadura de bronze da implacável necessidade. Em nome de uma revolução que perde o homem de vista e nada tem em conta além das leis históricas, tudo é permitido -- mesmo o combate sangrento contra o próprio homem. Vejamos a amarga critica que faz Albert Camus em O Homem Revoltado (Paris, Gallimard, 1951) contra Marx, contra essa concepção de revolução onde o homem é tido como simples joguete, ou melhor, um agente da história, desde que a revolta está no homem, a recusa de ser tratado como coisa (coisificado) e ser reduzido à simples história. Em conseqüência, a revolta em Camus é também revolta contra uma revolução que, ademais, exige do homem que aceite seu sofrimento em nome da realização de uma necessidade histórica. Na sua célebre peça didática A Decisão, Bertold Brecht mostra a que ponto um sacrifício pode chegar para satisfazer a necessidade histórica.

Embrasse te boucher. Mais                                                                                                           Change le monde; il en a besoin!                                                                                                   ...                                                                                                                                               Donc, nous décidons: maintenant                                                                                                 De notre corps retranchons notre propre pied,                                                                                !I est horrible de tuer.                                                                                                                  Pouretant nous tuons non seulement les autres                                                                                                                                                          mais aussi les nôtres, quand iL le faut.                                                                                               Car seule la violence peut changer                                                                                             Ce monde meurtrier, comme                                                                                                         Le savent tous [es vivants.                                                                                                             II ne nous est pas encore permis, dissions-nous,                                                                        De ne pas tuer.                                                                                                                          C'est uniquement par la volenté inflexible de                                                                              changer le monde que nous avons motive                                                                                     Cette décision.

(La Decisión, poema de Bertold Brecht)

Nunca Marx foi tão longe. Ao contrário: em vários lugares de sua obra, contestou uma inter-pretação por demais determinista. Várias vezes insistiu que as leis econômicas descobertas pela economia política não eram leis da natureza, mas que as relações sociais determinadas são produtos dos homens como o tecido, o linho etc. e não têm efeito de lei enquanto os homens não as modificarem. Donde a célebre frase: À tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre a cabeça dos vivos (O Brumário XVIII, Louis Bonaparte, p.69).

Isso seria difícil de compreender se todo o poder da história se voltasse ao desenvolvimento das forças produtivas e se fosse efetivamente sem importância saber quais ilusões e quais desejos alimentam as gentes. O desenvolvimento das forças produtivas é o campo do real que delimita o sentido do possível para o homem: se na sociedade como é, não encontramos mascaradas as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhe correspondem, todas as tentativas de lhe fazer explodir não passarão de donquichotismo, escre-veria Marx (Cl, p.95), e jamais o materialismo histórico procurou dizer mais.

Marx sempre investiu muito de seu tempo na reunião das forças revolucionárias, o que teria sido relativamente inútil se a revolução devesse advir dela mesma, assim como fundar um partido para provocar um eclipse solar. Marx cria profundamente no progresso do moderno e assim deixa suficientemente de fragmentos contraditórios e susceptíveis de induzir em erro, permitindo a certos discípulos ulteriores conferir à sua doutrina uma tendência determinista, fatalista, mecanicista, como disse Antonio Gramsci. Em toda vida Gramsci foi contrário a essas simplificações, da mesma forma que o marxista francês Louis Althusser, que questionava como é teoricamente possível sustentar a validade dessa proposição marxista fundamental: a luta de classes é o motor da história, ou seja, sustentar teoricamente que é pela luta política que é possível desmembrar a unidade existente, quando sabemos precisamente que não é a política, mas a economia, determinante em Ultima instância? (Por Marx, p. 221)

Em primeiro lugar isto não é uma imprecisão teórica, mas uma fraqueza humana a reforçar nossa deriva. Gramsci reconheceu que esse determinismo tinha um sentido: pois se tornou historicamente necessário e justificado pelo caráter subalterno de camadas sociais determinadas. Quando não temos a iniciativa da luta e de que a luta termina por se identificar com uma série de defeitos, o determinismo mecânico torna-se formidável força de resistência moral ... Eu fui momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim (Gramsci dans le Texte, Gallimard p. 153).

Esta certeza do futuro é um erro particularmente sedutor, porque é fonte de força: mesmo se as classes inferiores foram humilhadas e ultrajadas, ofendidas, sem influência e perseguidas quando se puseram à frente, quando se puderam dizer que o futuro lhes pertence; uma fonte inaudita e inesgotável de reconforto moral donde resultam os impulsos mais fortes para tomar uma iniciativa prática capaz de se transformar (Gramsci) em um desdobramento da vontade coletiva. De sua parte Marx não o teria visto muito diferentemente. Alguns anos antes de sua morte, escreveu numa carta: O sonho da iminência do fim do mundo incitou os primeiros cristãos a combater o universo romano, dando-lhes certeza da vitória.

Hoje a esquerda de todas as cores perdeu essa fé na vitória. É certo que lhe restou seu lado objetivista, como mostramos no início, a aversão pelos bons sentimentos, pelos pensamentos estúpidos e nalguns uma certa mordacidade pós-bolchevique que os faz considerar -- ao melhor com um certo levantar de ombros -- os resultados mais antipáticos (isto é um eufemismo) da mundializacão capitalista, como o preço a pagar pelo progresso. O materialismo histórico afirma, essencialmente, que não vale a pena senão para o que parece possível no horizonte, porque a nada serve desejar o que quer que seja, quando a realidade vai noutro rumo. Isto é sempre válido, mas aquele que quer engajar-se por urna sociedade melhor ou por um maior respeito pela natureza deve ter em mente que nenhuma forca oculta da história o fará em seu lugar. Eventualmente, o mundo não evoluirá noutro sentido, se indivíduos morais dotados de razão e de livre arbítrio não se engajarem.

Em sua última obra de filosofia política, Gérald A. Cohen pôs o dedo na ferida num pequeno livro recentemente aparecido Gleichheit ohne Gleichgültigkeit, (Igualdade sem indiferença) Hamburg. 2001. Esse veterano da velha esquerda norte-americana passou metade da vida a defender a tese que depois passou a considerar como o erro fundamental do marxismo: Com um pouco de ajuda de alguns adeptos do socialismo, o capitalismo produzirá o nascimento do socialismo. Hoje ele diz ter passado a um ponto de vista moral e se esforça para que nos deixemos inspirar por ideais, pois não haverá uma sociedade justa sem uma ética da justiça; para eliminar as condições de existência mais escandalosas, carecemos do fermento da moral. Sem isso, diz Cohen, todas as ideias segundo as quais o ativismo político não necessita de moral, mas só de conhecimento das necessidades históricas e a rigor dos interesses práticos para os quais a gente se reúne no intuito de lhes atender sempre com gabarolice; a despeito de sua confiança na história seriam, em primeiro lugar, os valores que teriam motivado Marx: a igualdade, a comunidade e a realização de si do homem foram, efetivamente, componentes indubitáveis do raciocínio e da argumentação do marxismo.

Cohen pleiteia atualmente uma sorte de moralismo esclarecido, sem recair na utopia. É irrealista de se opor à realidade; quando o mundo se põe em marcha, ele pode tomar diferentes direções. A que escolher dependerá dos indivíduos, de sua moral e das ideias que defendem. Cohen: Os homens têm a possibilidade de tomar decisões. E: Nós devemos trabalhar com as forças sociais sem obrigatoriamente tomar a direção que elas preferem. Seu colega politólogo novaiorquino Stephen Bronner recentemente declarou que hoje o engajamento pelos valores socialistas ou outros não se justificam mais, exceto pela convicção moral de fazer avançar assim a justiça.

O moralismo tem um lado menos cool. Ativistas moralmente indignados tendem também ao ativismo pelo ativismo: porque devem sempre estar em movimento, e a imobilidade significa a morte do engajamento - o que as naturezas calmas consideram enervante, tanto mais que tudo é interligado: a guerra com os interesses geoestratégicos e o neoliberalismo com a pobreza e a destruição do meio ambiente etc. etc. Por toda parte do planeta ocorre algo deprimente. Os que proclamam o grande Eu acuso ultrapassam bem mais facilmente a estreita linha que separa o pathos moralizador do simples kitsch e acabam por dizer não importa o quê. Tudo isso, no entanto, não é motivo para ser contra as convicções morais, que não são irrealistas, mas reais, têm forca própria e não podem ser desligadas das ideias, da filosofia que Marx dizia constituir uma força material, desde que amparada nas massas.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

LE DROIT À LA VILLE – Intervenção apresentada por Claude Schnaidt -- Colóquio: Traces de futurs – Henri Lefebvre -- St. Denis, 4 de junho de 1994.



Tradução: Frank Svensson

Não quero vos impor a leitura do texto que encaminhei a este Colóquio. Trata-se de um modesto adendo a l’Introduction a la modernité e é uma homenagem que devo a Lefebvre, uma questão entre mim e ele. É ainda uma referência para situar o porquê que o quero dizer: Nem sempre entendi o que ele como marxista pensa sobre o Direito à Cidade, e  não cesso de me opor  à quem insiste nesse tão raso enunciado. 

Henri Lefebvre
Devo, em parte, a Lefebvre haver aprendido que, por Marx e Engels, a cidade não tem futuro. Pelos pais fundadores, cuja audácia inibe muitos marxistas em cima do muro, a separação entre a cidade e o campo mutila e bloqueia a totalidade social. 

Ela é a projeção sobre o território, da divisão social do trabalho. Ela leva à divisão da população em classes. Com que resultado? A alienação geral. Subordinado à divisão do trabalho o individuo é submetido a situações e atividades que interrompem sua humanização. De um lado o campo invadido, do outro a imagem urbana degradada se dissociam. Além disso, a grande indústria, as exigências de mercado e de produtividade ajudam a dissociar o econômico e o social. Como sair desse impasse? 

Certamente eliminando a propriedade privada, constituindo uma economia em comum sobre base associativa na prática, que faça desaparecer as instituições políticas, mas principalmente ultrapassar a divisão do trabalho. Tal revolução supõe a supressão da cidade e do campo. Qualquer coisa difícil de se imaginar que não será nem cidade nem campo. Utopia de intelectuais assustados por Manchester e pela miséria dos camponeses de Macklenburg ? Esse não foi o enfoque de Lefebvre. Então porque sua luta pelo direito à cidade? Um direito que lhe veio ao espírito pensando nas populações suburbanas, na segregação, na solidão.

Pois sim Dionisíacos, surpreender-vos-ei por constatar que aos olhos do filósofo da rua Rambuteau1  não sois vistos como cidadãos plenos, e que haja inspirado arquitetos durante décadas a vos prometer: Agora vos proporcionaremos uma cidade de verdade.

O direito à cidade, Lefebvre definiu da seguinte maneira: ... significa o direito dos cidadãos urbanos, e dos grupos que constituem, participar de todas as redes e circuitos de comunicação, de informação, de intercâmbios. O que não depende nem de uma ideologia urbanística nem de alguma intervenção arquitetônica, mas de uma qualidade ou propriedade essencial do espaço urbano: “a centralidade”. Nenhuma realidade urbana, afirmamos aqui e alhures, sem um centro: sem a reunião de tudo que possa nascer e se produzir no espaço, sem a reunião atual ou possível de todos os objetos e sujeitos. O direito à cidade estipula igualmente que o encontro e acumulação dos lugares e objetos devem corresponder a certas necessidades geralmente desconsi-deradas, a certas funções transfuncionais: a necessidade de vida social e do outrem, a necessidade de funções lúdicas, a função simbólica do espaço ... .

O único meio concreto invocado por Lefebvre para fazer avançar o direito à cidade consiste em interferir nos interstícios entre o imóvel e o conjunto urbano, ao nível macro arquitetural e micro urbanístico. Nesse nível, afirma ele, se situam as pesquisas de alguns dos mais eminentes arquitetos da época.4  

E qual nome menciona? Ricardo Bofill o maior mistificador de toda a história da arquitetura. Evidentemente Lefebvre teria feito melhor em se abster sobre o assunto. Ocultou o que há de fulgurante nos fundadores do socialismo científico sobre a questão urbana. Somou uma questão moral a uma política urbanística retrógrada. Perdeu-se numa visão anacrônica de centralidade urbana quando as cidades se interligam umas às outras, fundindo-se em regiões urbanizadas, quando os centros se diluem perdendo sua funcionalidade de origem. Um direito à cidade em névoas urbanas nas quais as cidades se transformam em pseudo-cidades.

 R. Bofill. Quartier de la Sourderie; Saint-Quentin en Ivelines, 1980.  

Sinto-me particularmente atingido por ser um pouco responsável. Fui, com a camarada Anne Marie Karlen de Genebra, um dos primeiros a encorajarem Lefebvre a tomar a questão urbana em consideração. Houve, em seguida a exclusão, maio 68, um outro Lefebvre, e o direito à cidade já era. Um encadeamento que talvez não seja tão estranho que se me tornou um sério problema. Ajudai-me a vê-lo com clareza. Agradeço penhoradamente.

N o t a s :

1 – Lefebvre, Henri: Espace et politique – Le droit à la ville II. Paris. Anthropos 1972. P.144.

2 – Domicile de Henri Lefebvre au coeur de  Paris.

3 – Op. cit. 1, pp. 21-22.

4 – Op. cit. 1, p, 158. 

domingo, 21 de abril de 2013

REALISMO, SOCIEDADE DE CLASSES E ALIENAÇÃO – Parte III.




Gunnar Gunnarsson - (1889 – 1975). Pensador marxista sueco. Entre suas principais obras encontram-se Os grandes utopistas; A Comuna de Paris; Gyõrgy Lukács; De Machiavelli a Mao; O ideário da socialdemocracia; Estética marxista. e História do fascismo.



Tradução: Frank Svensson   
        

Existencialismo, guerra mundial e crise

O fascismo não surgiu repentinamente como um mau-cheiro vindo do fundo da alma humana -- ele tem tradição, também, na filosofia burguesa. Ou como Gorki drasticamente formulou: A burguesia nos levou de Prometeu aos apaches.57

No processo em que a ideologia da violência repressiva refina a sua visão de mundo, e suas motivações, o existencialismo assume um lugar importante. Da forma popular como Jean-Paul Sartre o configura, trata-se de uma mercadoria de exportação made in GermanyO existencialismo sartriano apresenta-se com pretensões radicais e até mesmo revolucionárias.58  

É verdade, igualmente, que provocou reações moralizantes de círculos burgueses de acentuado enfoque católico. É sabido como irados pais de família da baixa classe média certa vez invadiram a séde dos existencialistas, o Café Tabou, onde se dava uma festa filosófica, apagando a espalhafatosa orgia metafísica com água trazida em latas e baldes. As vítimas da ação, que como o seu mestre não acreditavam em heroísmo, bateram em retirada, mas vingaram-se, afixando na porta do Café Tabou o seguinte aviso: Fechado até 1 de setembro, quando esperamos que a burguesia se tenha acalmado.

A burguesia acalmou-se. Quase não estava seriamente inquieta. Pois o existencialismo é na realidade urna ideologia inofensiva ao sistema. O padre jesuíta Daniélou afirmou com autoridade que o existencialismo favorece as forças reacionárias e católicas; graças ao existencialismo, os inimigos -- Dieu, merci! -- da Igreja e das classes conservadoras, o liberalismo e principalmente o marxismo, tinham sido vencidos!59

Certa crítica tem surgido, no entanto, da parte de católicos, insinuando que o existencialismo teria influências materialistas e ateístas. Durante a famosa querelle de l'existencialisme, Sartre defendeu-se vigorosamente de tais acusações. Sua tática era marcante: enquanto o tempo todo se mantinha na defensiva em relação ao catolicismo, não hesitava atacar o marxismo como o mais ativo e vigoroso concorrente de sua filosofia.60  No entanto, é inegável que nisso criticava com precisão o dogmatismo, o marxismo vulgar, e o marxismo falsificado sob a forma de stalinismo.

O existêncialismo tem as suas raízes no idealismo transcendental de Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Por conseguinte, do ponto de vista católico, sua origem não pode deixar de ser protestanticamente comprometedora; mas é idealista, puramente idealista. Não vamos aqui nos ocupar com as diferenças entre o idealismo critico de Kant e as respectivas posturas de Fichte e Schelling, ou com a crítica de Hegel ao eu absoluto de Fichte. Basta salientar, que toda a filosofia existencialista liga-se mais ou menos a questões da filosofia transcendental e gravita em torno da questão do sujeito, e da sua liberdade e capacidade de ação. Liga-se, portanto, a uma filosofia caracterizada como uma revolução no mundo espiritual, ao contrário da grande Revolução Francesa, que -- inspirada pela filosofia burguês-materialista do iluminismo, com Diderot, Voltaire, Helvetius, d'Alembert e Holbach como seus principais expoentes -- no mundo real derrubou tronos e valores feudais, abrindo caminho para o moderno sistema de produção capitalista e sua sociedade.

Em relação a esse materialismo francês, o idealismo alemão era -- em correspondência ao então pouco desenvolvido elemento capitalista na Alemanha -- uma filosofia burguesa, que ainda não ousara emancipar-se da graça divina luterana e da proteção patriarcal dos príncipes territoriais. O que havia de realmente revolucionário nessa filosofia no que de certa forma ultrapassou o materialismo francês -- era a dialética hegeliana, na qual a ideia de desenvolvimento, embora com uma roupagem idealista, penetrou no pensamento moderno. Marx e Engels foram os únicos que, passando pela crítica à religião de Feuerbach, aliaram-se a esse lado hegeliano. Sõren Kierkegaard preferiu considerar o elemento conservador do idealismo hegeliano, o sistema metafisico-idealista de Hegel.

De igual modo, todo o neo-hegelianismo gerado na universidade alemã dispunha-se a liquidar a dialética. Transforma-se, assim, a dialética de Hegel, que era nitidamente uma dialética de contradições, numa dialética conciliatória, seja quebrando a negação na trilogia tese-antítese-síntese, seja abolindo o momento da identidade, deixando ficar somente a negação. Dessa forma, atinge-se um conceito de mudança ou de desenvolvimento sem nenhum sentido, e sim algo permanente, que muda para um desenvolvimento absoluto, o qual, segundo as leis da lógica se transforma numa calmaria total. Destarte, mistifica-se o próprio conceito de desenvolvimento: o desenvolvimento passa a ser algo irracional, que não pode ser previsto ou dominado pelos homens.

Com esse mistificado conceito de desenvolvimento, as leis da história, que contam com a derrocada do capitalismo, são postas fora de jogo (tal como antes, com a divisão neo-kantiana entre ciências naturais, que buscam leis, e ciências culturais, meramente descritivas). Essa corrompida dialética ganha uma importante função burguês-apologética nas lutas de classe do período de transformação da sociedade. O estado absoluto de Hegel, que originariamente implicava na concretização da razão burguesa, que revolucionariamente se voltava contra o feudalismo, é agora cinicamente usado em defesa do contra revolucionário poder estatal, que dissolve até a democracia burguesa e massacra a classe obreira.

Essa luta contra a dialética mostra-se particularmente clara nos precursores do existencialismo. Edmund Husserl, cuja conhecida fenomenologia aparece como restauradora do sujeito transcendental, está em flagrante oposição à dialética. Para ele a existência dissolve-se, em consonância com o corrompido conceito de desenvolvimento, numa sequência de atos intencionais, fazendo com que a consciência e seus objetos, junto com os sentimentos a eles ligados, bem como as relações dos objetos para com outros objetos, se unam. Entretanto tudo desemboca em pura mística, em que a própria essência da consciência só pode ser compreendida através de uma intuição observadora de essências. Nessa especulação fenomenológica o moderno pensamento burguês atinge o auge da barbaria escolástica.61  Todavia, só com o mestre e precursor direto de Sartre, Martin Heidegger, as suas consequências extremas tornam-se evidentes.

Essa reacionária especulação, com sua pretensiosa e afetada terminologia, é bem adequada, com seu estático enfoque e seu misterioso e grosseiro caráter metafísico,       a uma estagnada Alemanha de desastrosas uniões de altos-fornos e latifúndios, e de reação feudal e ultra capitalista. A relação entre essa fase do existencialismo alemão, e o período posterior à Primeira Grande Guerra, quando a classe burguesa alemã e principalmente quando a classe média, desesperada com sua situação caiu em profundo niilismo, é clara.

Martin Heidegger era típico desses segmentos sociais. Ao voltar de sangrentos campos de batalha, onde a morte espreitara nas trincheiras, deparou com a dissolução da frente interna de luta, com o caos e a miséria geral, com a fome, a inflação e um inflamado militarismo sedento de vingança. Os conceitos ser para e ser eu mesmo, que, ligados à fenomenologia de Husserl desempenham um tão importante papel em sua filosofia, constituíram, na falta de ideias, de bases mais profundas, os salva-vidas de uma classe média náufraga, a qual, proletarizada e expelida do seu seguro contexto de vida, desesperada, agarrava-se a uma identidade social que parecia perder-se irremediavelmente.

A industrialização, a democracia, a revolta das massas, que em termos de organização se expressa principalmente na luta da classe obreira por democracia política e econômica, são totalmente estranhas para a especulação de Heidegger, a na qual a classe média, mais uma vez -- parodiando Günther Anders -- repetiu as heresias que os ele- mentos mais avançados da burguesia há muito tempo haviam deixado para trás e que, para o proletariado secularizado e consciente de sua condição de classe, com a sua teoria socialista de base científica, e com o elevado nível de organização sindical e política, não tinham nenhuma atualidade: Heidégger mais uma vez

... passou pela reforma de Lutero, mais uma vez descobriu a autoridade da consciência individual, mais uma vez se postou sobre os pés do eu fichtiano, mais uma vez com Feuerbach e Nietzsche, negou o pecado original, mais uma vez, na falta de melhor capital, como Stirner, apoderou-se de si mesmo -- e tudo isso numa época em que todos esses passos que conduziram à visão de mundo religiosamente neutra do século vinte já estavam esquecidos.62

O existencialismo foi um produto da Primeira Guerra Mundial, mas só após a Segunda é que, por meio de Sartre, se tornou um fenômeno amplamente europeu. Um cartão postal vendido em Freiburg im Bresgau na era hitleriana mostra o récem-investido reitor, Martin Heidegger, à frente da S.A. local -- Die Strasse frei, den braunen Bataillonen!  (A rua livre, ao batalhão marrom!). Como pode um filósofo, que cinicamente desfilava o poder do espírito, quando atrelado ao espírito do poder, tornar-se, após a derrocada do nazismo, uma presença filosófica na França de Descartes, Diderot e Lafargue?

Tal situação liga-se naturalmente ao clima de depressão da burguesia após a Segunda Guerra Mundial e com a crise geral do capitalismo. Já quando o século era jovem, escreveu o arguto filósofo e sociólogo francês Emile Durkheim:

O humanismo clássico sobreviveu a si mesmo, mas nenhuma nova crença o sucedeu. A consequência é ceticismo, decepção e perigosas doenças da alma.

Aquilo que então era válido agravou-se por meio de campos de concentração, câmaras de gás, guerras genocidas e neo-colonialistas, e a ameaça de destruição do mundo pela guerra nuclear. A desnorteada classe média e a ocasionalmente abatida burguesia francesa tinham necessidade de uma filosofia que pudesse desbancar o marxismo e substituído por uma metafísica teoria da salvação dirigida para os problemas interiores, o que resultou em bons ventos para as velas do existencialismo sartrista.


A decadência ideológica -- um destino ?

Será inevitável uma evolução rumo à decadência ideológica? Marx demonstrou que a sociedade capitalista desenvolve dentro de si mesma as forças, que superarão o próprio sistema capitalista e, com isso, também as ideologias da decadência: a classe obreira, com a sua visão de mundo socialista. Mas, e para a burguesia? Globalmente, sem dúvida, sim -- mas não em sentido fatalista em relação so indivíduo isolado. Esse, como observou Engels, não está hermeticamente fechado em sua classe e em sua ideologia: o indivíduo é influenciado em suas decisões não só por sua classe, mas por toda a sociedade. 64

A análise de classe do marxismo vulgar não entendeu a dialética contida na relação entre o sujeito e o objeto social: não dispõe do complexo jogo de mediações mediante o qual se verifica a interação entre indivíduo, classe, sociedade, época, desenvolvimento humano universal e natureza. O marxismo é ciência e não teoria da salvação. Por isso, a pesquisa dessa relações sujeito-objeto e sua interação faz-se necessária como uma das principais tarefas da ciência marxista e, consequentemente, também para urna estética e teoria da arte marxista. Nas atuais circunstâncias, isso implica em perceber claramente que, apesar da decadência ideológica da classe burguesa, de suas mentiras apologéticas, e de sua falta de realismo, (fuga para modismos metafísicos e religiosos), apesar de tudo, para o burguês como indivíduo, existem diferentes possibilidades de reagir ante a decadência ideológica da sua própria classe social.

Uma atitude por demais comum é capitular. Mas honestos e altivos burgueses podem também negar-se a sujeitar-se à ideologia decadente de sua classe, romper com ela e pôr-se em dia com as tradições culturais dos gloriosos dias de sua classe, ou ligar-se ao desenvolvimento e aprofundamento dessas tradições no movimento operário e no marxismo. Foi o que se deu com escritores como Lion Feuchtwanger, Bertolt Brecht, Heinrich e Thomas Mann, Anatole France, Romain Rolland, Henri Barbusse e muitos outros.

As agudas contradições de classe durante o período de transformação da sociedade também podem levar pessoas antes conscientes a um colapso moral e intelectual. Exemplo disso foi a passagem de Malraux para o néo-fascismo gaullista. E finalmente, honestos ideólogos burgueses podem virar-se contra a sua própria classe, ao vivenciar as contradições de sua época e configurá-las em suas obras. Esse tipo de conflito não conduz necessariamente a uma adesão direta à classe trabalhadora. A vitória do realismo' implica finalmente no triunfo do momento de verdade contido na formação ideológica sobre a alienação ideológica.

A libertação do indivíduo burguês da decadência da ideologia de classe (Gyorgy Lukács) encontra naturalmente dificuldades. As dificuldades são maiores onde a tradição apologética é mais forte; nas ciências sociais. Nas ciências naturais a situação é parcialmente diferente: pela própria constituição do seu sistema social, a burguesia é obrigada a desenvolver a técnica, o que explica o ascenso das ciências naturais no período da decadência. Devemos lembrar, no entanto, que mesmo o desenvolvimento da pesquisa das ciências naturais vem conflitando-se mais e mais com a permanência do sistema capitalista. Um exemplo recente é a força nuclear, cujo emprego pacífico deveria levar a imprevisíveis consequências para o capital monopolista e que por isso em mãos da classe dominante transformou-se na mais terrível ameaça à paz; à liberdade e à felicidade humana. Da mesma forma sacudiria as bases do lucro capitalista.65

A crítica da decadência ideológica feita por Marx e Engels, começou por motivos históricos, a princípio com referência a religião e metafísica, filosofia e economia política. Havia terminado a época dos grandes sistemas filosóficos. Marx e Engels trabalhavam cientificamente; não tinham nenhum propósito de criar um sistema estético. Todavia, só um leigo em marxismo e falto de formação científica pode acreditar seriamente que os fundadores do marxismo se teriam pronunciado sobre fenômenos estéticos apenas ocasionalmente e pessoalmente, e que a esses raros pronunciamentos sejam desprovidos de importância teórica e significado científico.

Esses episódicos e esparsos pronunciamentos de Marx e Engels sobre arte e literatura foram coligidos, organizados e sintetizados por Mikháil Aleksándrovitch Lifschitz num volume de mais de seiscentas páginas. A última edição, em alemão, dos pronunciamentos de Marx e Engels sobre questões de estética compreende dois volumes que somam mil quatrocentas e sessenta páginas. O material compreende não só opiniões que os dois trocaram entre si sobre romances lidos e características de escritores contemporâneos, mas também explícitas considerações artísticas e histórico-literárias, incluindo análises de escritores isolados, e suas obras, essenciais contribuições para o entendimento das bases sociais da arte e da literatura, e comentários a respeito de literatura política e poesia popular.

Marx e Engels criticaram as obras que lhes interessaram e participaram das lutas literárias de seu tempo. Avaliaram os clássicos esteticamente e do ponto de vista de atua1id4de, salientando o conteúdo proletário de mudança social. Discutiram o realismo dos clássicos. debateram os gêneros e suas funções e vasculharam as tradicionais categorias estéticas. É pois, assaz estranho que essas esparsas observações e episódicos pronunciamentos, frutos de um interesse fortuito, na realidade tenham logrado um resultado quantitativo e qualitativo tão considerável. Seria um escárnio para com pesquisadores sérios como Plekánov, Lifschitz, Lukács e outros, supor que houvessem montado uma falsificação desse material, uma estética sistêmica que aos próprios Marx e Engels seria estranha. Esses pesquisadores não fizeram nada disso. Pelo contrário, de forma cientifica, perfei-tamente legítima sistematizaram um material imanente de teoria em relação ao marxismo como um todo.

Uma das principais tarefas da ciência é justamente essa sistematização da matéria -- o que não tem nada a ver com outros sistemas metafísicos ou não, no sentido clássico do termo. E no caso em questão, é justamente essa ordenação sistemática do material legado que constitui a prova decisiva contra as criações mentais de marxistas vulgares e sectários, afirmando que Marx e Engels eram sábios quando tratavam de economia política e ciências sociais, mas diletantes sem teoria quando discorriam sobre questões de estética. Por conseguinte, o marxismo não é um sistema, mas, como toda ciência, uma coerente e estruturada formação teórica, conscientemente sistematizada por uma determinada metodologia (no caso do marxismo, o materialismo histórico e dialético). Só quem seja alheio a métodos científicos pode supor que o trabalho de pesquisadores marxistas, com tal sistematização dos pronunciamentos de Marx e Engels sobre arte e literatura e sua localização no conjunto estrutural da formação teórica marxista possa ser alguma forma de arbítrio ou de frívola violação da teoria. Que insignes pesquisadores possam ter-se enganado em determinados pontos é de uma superficialidade total. Até mesmo notáveis pesquisadores cometem erros, e seus equívocos podem resultar mesmo producentes para as ciências. Tais enganos distinguem-se daquelas verdades incontestáveis e criticas que, com inimitáveis ares de autonomia e de moralizante integridade, são apresentadas contra os mestres por aqueles que se julgam chamados e escolhidos. Tão natural como tudo isso, toda troca de opiniões cientificamente produtiva, inclui a discussão e a análise de citações essenciais, tanto a favor como contra. 

Em produções de marxismo vulgar ou sectárias, os clássicos podem ser deturpados, na medida em que substituam o pensamento critico, a argumentação objetiva ou a pesquisa de posicionamentos. Mas naturalmente é fácil distinguir tal emprego de citações, desde que os mencionados pronunciamentos sejam ordenados no âmbito de problemas ou de uma argumentação. Nem todos os que citam Marx e Engels precisam ser fidedignos utilizadores de textos, nem os clássicos obrigatoriamente contêm erros. Como acontece com a formação teórica marxista, toda outra ciência deve ser provada e, depois de sua renovação e correção, deve ser provada de novo.


N o t a s :

55 Ibidem, pp. 68-69.

56 Max Scheller: Vom Umsturz der Werte (Da subversão dos valores), pp. 123-124. Leipzig, 1923.

57 Maxim Górkiy: Die ZerstOrung des Personlichkeit (A destruição da perso-nalidade), p. 85. Ver ainda pp. 32-33.

58 A literatura sobre o existencialismo é muito ampla. Indicamos aqui uma seleção de enfoque marxista: Henri Mougin, La sainte famille existentialiste, (A santa família existencialista) Paris, 1947; Jean Kanapa, L'Existentialisme n'est pas un humanisme (O existencialismo não é um humanismo), Paris, 1947; Lefevbre, L'Éxistentialisme (O existencialismo), Paris, 1947; Giörgy Lukács, Existentialisme ou marxisme? (Existencialismo ou marxismo?) Paris, 1948. Ver ainda: Boris Pessis, Die franzõsisehe Literatur wãhrend der Kriegsjahre (A literatura francesa durante os anos de guerra), SL 4:1946, e Sartres literariseh-philosophische Parade (O desfile filosófico literário de Sartre), SL 4:1947; Y. Fried, A Philosophy of Unbelief and indifferenee. Jean-Paul Sartre and Contemporary Boargeois Philosophy (Uma filosofia do cepticismo e da indiferença. Jean-Paul Sartre e a filosofia burguesa contemporânea), MI 3:1947; Wilhelm Dultz, Der Existentialismus ais Ausdrück der bürgerlichen Intelligenzkrise (O existencialismo como expressão da crise da inteligência burguesa), Eh 6:1947.

De outros pontos de vista: Robert Campbell, Jean-Paul Sartre, Paris, 1945; Roger Troisfontaines, Le choix de Jean-Paul Sartre (A escolha de Jean-Paul Sartre), Paris, 1945; G. Marcel, Homo Viator, Paris, 1944; Claude Roy, Jean-Paul Sartre, Poesie 47, n. 38 (Jean-Paul Sartres, Poesia 47, n.38) Cl. - E. Magny, Système de Sartre (Sistema de Sartre), Esprit 3/4:1945; Abbagnano, Nicola: Philosophie des menschlichen Konflikts (Filosofia dos conflitos humanos), Munique, 1957: Beyer, W. R., Vier Kritiken (Quatro críticas), Colonha, 1970; Hühnerfeld, Paul, In Sachen Heidegger (No dizer de Heidegger), Ulm, 1961; Sartre, Jean-Paul, Marxismus und Existentialismus (Marxismo e existencialismo), Reinbeck bei Hamburg, 1964; Adam Schaff, Marx oder Sartre? (Marx ou Sartre?) Hamburgo, 1964; Thure Stenstrõm, Existencialismen (O existencialismo), Estocolmo, 1966.

59 Père Daniélou, Etudes (Estudos) 9:1945, p. 241 e seguintes.

60 Ver Henri Mougin, La Sainte famille existentialiste (A santa família existencialista), p. 23 e seguintes.

61 Edmund Husserl: Logische Untersuchungen (Pesquisas lógicas) Halle, 1928.

62 Günther Anders: Nihilismus und Existenz (Niilismo e existência). Die newe Rundschau 1:1946, p. 74. Comparar com a cínico sentimental entrevista de Stephen Schimansky a Heidegger em Partisan Rewiew 4:1948, On meeting a philosopher (Encontrando um filósofo), na qual o escritor teve a arrogância de elogiar a grandeza -- não emitiu uma única acusação! -- e até mesmo comparar esse escudeiro do nazismo com Hõlderlin!

63 Tão certo como esta constatação foi e é, são lamentáveis e cada vez mais débeis as tentativas do moderno humanismo burguês de manter vivo o humanismo sem criar bases humanas para a vida humana.

64 Ver Gyõrgy Lukács: Karl Marx und Friedrich Engels als Literaturhistoriker (Carlos Marx e Frederico Engels como historiadores de literatura), Berlim, 1948, p. 135.

65 Encontramos aqui uma contradição quanto à contínua e inevitável necessidade de desenvolver a técnica de um tipo que o sistema econômico capitalista não é capaz de manter.  

* * * * FIM