quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O MUNDO AUTOMÁTICO OU UM TEATRO SEM AUTOR: O CAPITALISMO – A obra mestra de Marx: O CAPITAL -- Parte II (capítulo VI de: Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.



Robert Misik *

Tradução: Frank Svensson


A sociedade produtora de mercadorias se distingue de todas as outras sociedades conhecidas até agora por seus detalhes essenciais. Os indivíduos que aí existem são livres. As sociedades onde os servos produziam para seus senhores não alcançaram o estagio do princípio generalizado da mercadoria, mesmo se conheceram a troca e o dinheiro. O camponês, por exemplo, devia fornecer ao senhor uma parte fixa de sua produção. Mas esses produtos que passavam do servo para seu senhor não eram de nenhum modo mercadorias e a relação de dependência e de exploração era clara. Contudo, a simples circulação das mercadorias, que era igualmente possível nessas sociedades, resultava uma forma ainda grosseira e elementar de capital. A acumulação de riquezas pelo comércio, segundo a fórmula D-M-D' (de qualquer modo a fórmula primitiva do capital): dinheiro - mercadoria - dinheiro -- eu compro uma mercadoria e eu a revendo mais cara.

A circulação das mercadorias é o ponto de origem do capital. (C.1,1, p. 151). Percebemos aqui o que faz a especificidade do Capital, mesmo sob uma forma ainda inacabada: é sempre um processo. O Capital não é um simples relato, mas um processo nos diferentes momentos do qual ele não cessa de ser do capital escreve Marx, acres-centando como capital, a moeda perde sua rigidez e de coisa palpável que era torna-se um processo (G.I, 1pp. 198 e 204).

O capitalista possuidor de dinheiro diferencia-se do entesourador pelo fato que il en est de lui como do concorrente que cada conquista nova não leva senão a uma nova fronteira (C.I, 1, p. 139). Só uma sociedade capitalista avançada não poderá se contentar de acumular capitais pela velhacaria e peto calote ou outras formas de lucro comercial. Se para ser bem sucedido, bastasse aos comerciantes vender as mercadorias mais caro do que as compraram, não chegariam longe. Marx descobre então que existe uma mercadoria própria criadora de valor que ela mesma não possui: a força de trabalho humano.

Nesse drama econômico, são dois homens livres que se enfrentam: o trabalhador e o capitalista. Nenhum oprime nem engana o outro. Eles estabelecem um contrato como se pratica entre pessoas livres. Um vende ao outro sua força de trabalho por um período determinado. O outro tem o direito de se servir disso. A força de trabalho tem seu valor, seu preço: o valor dos meios de subsistência necessários (C.I, 1, p. 174) á conservação de seu proprietário.

Haveria aqui toda uma serie de objeções a fazer, entre elas duas essenciais: primeiro, mesmo na época de Marx, os trabalhadores não recebiam sempre só do que pagar pão, um pedaço de embutido (linguiça), uma sopa e um teto debaixo do qual se abrigar. Segundo, os trabalhadores não ganham todos a mesma coisa, pois a quantidade de bens dos quais necessitam é relativamente igual. Marx se apressa em acrescentar que as ne-cessidades naturais diferem conforme o clima e outras particularidades físicas de um país e dependem do grau de civilização atingido. Assim a noção de miséria é sempre muito relativa e a forca de trabalho inclui então, do ponto de vista do valor, um elemento moral e histórico (C. 1, I, p. 174). O fato de que os trabalhadores mais qualificados recebam um maior salário que os menos qualificados não impressiona mais: pois uma força de trabalho na qual intervenham custos de formação superiores cuja produção custa bem mais tempo de trabalho e que tem por consequência um valor superior à simples forca de trabalho (MEW 23, p. 212).

Marx continua, a seguir, a desenvolver sua célebre lei do valor: os operários que percebem um salário trabalham nas fábricas. Eles transformam bens -- matérias-primas e produtos de base -- tendo um certo valor (ou seja, que contenham trabalho humano por assim dizer cristalizado), com a ajuda de máquinas das quais uma parte do valor (contendo, portanto trabalho humano cristalizado) é transmitido ao produto final. O valor do produto de base e dos meios de trabalho, mais o tempo de trabalho que o operário investiu neles, dá o valor do novo produto obtido. O acréscimo do valor é mais elevado que o contra-valor recebido pelo operário para suprir a sua subsistência, ou seja, o salário, a remuneração.

A diferença ou mais valia é embolsada pelo proprietário do capital. Sem lhe extorquir;  o  capitalista ganha mais do que pagou ao operário. Marx reitera sua demonstração com a ajuda de inúmeros exemplos e descreve em detalhes o que se passa quando poucos trabalhadores trabalham em setores exigindo muito capital, como um tempo de trabalho médio social torna-se uma quantidade de valor, como, intensificando o trabalho, a proporção de trabalho necessário para produzir o equivalente do salário pode ser modificado em sobre-trabalho em beneficio do empreendedor etc., etc. Nós não demoraremos sobre esses fatos concretos, pois o princípio segundo o qual o trabalho humano é o único criador de valor e que o preço de um produto se mede, finalmente, pelo trabalho investido, é ele mesmo contestado.

Depois de 130 anos, esta tese central de O Capital tem servido de pretexto aos adversários de Marx para por em questão a totalidade do edifício intelectual da obra. Que papel desempenha o setor de serviços nesta obra? Que papel desempenha o setor de serviços neste conceito? Que lugar ocupam os intelectuais modernos, os cientistas, cujos talentos, a eloquência ou a aptidão a se vender, determinam sensivelmente o preço de sua força de trabalho?  Estas questões e outras não cessam de inquietar os discípulos de Marx, que por seu lado se dão todo trabalho para conciliar o menor detalhe, por mais estranho, com a teoria. Recentemente, ainda, o economista britânico e biógrafo de Keynes, Robert Skidelsky, condenou Marx proclamando que a tese principal de sua economia, a teoria do valor trabalho, fora demolida e não reabilitada.

É certo que a teoria do valor trabalho é um tanto grosseira. (lembremos que Marx não a elaborou ele mesmo, mas a emprestou com algumas modificações do grande economista britânico David Ricardo). Marx com sua verve intelectual tenta ressaltar o princípio como um químico isolando um elemento que ele se propõe a pesquisar. Em sua biografia, Francis Wheen escreve: ele admirava a metodologia objetiva, não sentimental de Ricardo e de Adam Smith. Na verdade, os aspectos de O Capital que são mais frequentemente motivo de zombaria hoje, como a teoria do valor-trabalho é derivada desses economistas clássicos que formaram a ortodoxia dominante da época (p. 297).

Para Joseph Shumpeter, um outro grande economista do 20.° século, esta teoria não era falsa, mas não era mais que uma vaga aproximação das tendências históricas dos valores relativos. O debate em torno da teoria do valor-trabalho foi quente e fortemente tingido de ideologia, pois -- que a ideologia seja cientificamente sustentávet ou não -- põe-se a questão: será que a classe obreira é única a prover à riqueza social ou não será que a burguesia também tem uma parte desse mérito? A verdade certamente se situa nalgum lugar entre os dois casos. Portanto a validade relativa da teoria que quer que o trabalho cristalizado determine essencialmente o preço de um produto não cessa de ser provada pelos proprietários de capital, quando, obedecendo às leis de mundialização quando eles deslocalizam ateliês de montagem de país a salário elevado para regiões de custo baixo dos salários -- observando que é a única forma de continuar competitivo no mercado mundial. De fato, os preços só são flexíveis até um certo limite e quando caem abaixo do custo de produção -- que finalmente não baixam além dos custos do trabalho hu-mano – e a empresa que assim fizer certamente não terá um belo futuro.

Uma tese deve abstrair dos casos particulares e dos detalhes secundários para ter validade universal. É isso que lhe dá força e fraqueza. É certo que o capitalismo de O Capital é uma espécie de capitalismo de laboratório com um mercado livre corno não existe na realidade. Em certas partes de sua obra, Marx reconhece que para simplificar a análise, é necessário .., primeiro: deixar de lado todos esses fenômenos que dissimulam o funcionamento intimo de seu mecanismo e que os processos que ele estuda sejam naturalmente modificados por circunstâncias particulares (C. 1, 3, p.8): o Estado, as lutas pelo poder, a tradição, a ignorância, a estreiteza de espirito, a etiqueta, as invenções, as histerias coletivas e a legislação social, são efetivamente externas ao sistema político-econômico - se bem que fundamentais na história da sociedade capitalista moderna. Em sua análise Marx foi obrigado a supor um mercado puro, uma livre concorrência pura, mesmo sabendo perfeitamente, como afirma Gramsci, que a realidade jamais existe em estado puro.

Entretanto, todas as simplificações jamais impediram Marx de ver mais claro que a maioria dos bravos empiristas de sua época, bem como da nossa. Na segunda parte de  O Capital, Marx retrata artisticamente a maneira como os processos acionados pelo capitalismo e as relações das relações que ele engendra mostram uma espécie de mundo automático, uma grande máquina universal que reúne todo o mundo a ela e transforma os sujeitos, do maior ao menor, em engrenagens da valorização do capital. Lá onde ele é fundado no salariado, a produção mercantil se impõe à sociedade inteira C. 1, 3, p. 27). O capitalista cria um mecanismo social do qual ele só é uma engrenagem... e a con-corrência impõe as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas a cada capitalista individual (C. I., 3, p. 32). Da mesma forma que o proletário não passa de uma maquina a produzir a mais-valia, o capitalista não passa de uma máquina a capitalizar a mais-valia (C. l, 3, p.36). Mas, da mesma forma que o mundo capitalista é um monstro, é um mecanismo morto que aciona seus princípios independentemente dos atores e pelas costas dos mesmos integrando-os como anexos vivos; na usina capitalista é a automação mesma que é o sujeito e os trabalhadores são simplesmente auxiliares como órgãos conscientes a seus órgãos inconscientes (C. l, 2. p.102). De diferentes máquinas das primeiras manufaturas modernas nasce um monstro mecânico que de seu gigantesco conjunto de membros, enche de construções inteiras; sua forca demoníaca, dissimulada pelo movimento cadenciado e quase solene de seus enormes membros, explode na dança febril e vertiginosa de seus enormes membros operacionais (CL, 2, p. 105).

Várias vezes sublinhamos o talento de escritor de Marx, Abandonemos agora por um instante nossas reflexões sobre a adequação ou inadequação desta descrição a nosso capitalismo contemporâneo, para perguntar se nosso conto de Frankenstein, este monstro criado pelo homem que se volta contra seu autor, não teria sido mudado numa clássica história de vampiros, de monstros que sugam a substância dos homens? Podemos certamente discutir em que medida a descrição feita por Marx do capitalismo corresponde à atualidade ou ao passado; o averiguado é que a conquista exterior dos países pela sociedade produtora de mercadorias e acompanhada de uma colonização interior; que as necessidades humanas foram manipuladas, disciplinadas, adaptadas ao funcionamento industrial e que os homens foram literalmente adestrados. Esse processo é confirmado pela abolição das regulamentações exteriores no capitalismo flexível da época atual. De fato, ele supõe um indivíduo produtor e empresário ades-trado interiormente - formatado, diríamos nós hoje - sem o que o processo não poderia funcionar. Os sujeitos não têm mais necessidade de serem divididos em partes, os fios invisíveis da dependência objetiva são suficientes, pois faz finalmente duzentos anos que a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (G.l,p. 27).
A tese da economia como sistema -- ou seja, da auto-geracão e da autoperpetuação dos mecanismos econômicos capitalistas -- não foi antecipada, globalmente pela breve anunciação de Marx: No mercado mundial, a conexão do indivíduo singular com todos, mas ao mesmo tempo também a independência dessa conexão em relação aos indivíduos singulares eles mesmos atingiram seu pleno desenvolvimento?

Naturalmente, Marx não descreve o capitalismo em suas sutilezas, somente como violento opinador. Que o capital contém contradições, nós somos o último a negar. Nosso objetivo é ao contrário de lhes desenvolver completamente (G.l, p. 291). O capitalismo introduziu um grão de loucura como elemento da economia, determinado pela vida prática dos povos. É assim que encontramos em O Capital o paradoxo que conhecemos perfeitamente sob a denominação de crise do trabalho: a produção baseada no salariado tem tendência a tornar o trabalho supérfluo por causa do desenvolvimento técnico e cientifico donde resulta esse absurdo: o imenso potencial liberado pela redução do tempo de trabalho e pela liberação da rotina graças à automação e à revolução informacional fazem pesar sobre os homens um terror pior ainda que o do salariado, haja vista a crescente reviravolta pelos restantes empregos nos ateliês de fabricação, totalmente automatizados: O meio mais poderoso de encurtar o tempo de trabalho resulta de uma estranha mudança, o meio mais infalível de transformar a vida inteira do trabalhador e de sua família em tempo disponível para a valorização do capital (C.l, 2, p.91).

É difícil de se fazer uma ideia do conjunto de argumentações parcialmente lógicos e contraditórios que atravessam não somente a sociedade mas também os sujeitos. Tudo como os metalúrgicos que investem, nos nossos dias, sua poupança nos fundos de pensão, errando agindo corretamente, o capitalista explica Marx, observa a massa total dos trabalhadores à exceção de seus próprios operários... não como trabalhadores mas como consumidores. Assim cada capitalista exige efetivamente de seus operários que eles poupem, mas unicamente dos seus, porque não tem a haver senão com eles como operários; principalmente não o resto do mundo de operários, pois a estes os vê como consumidores. Consequentemente, busca todos os meios suscetíveis de lhes incitar ao consumo, de conferir novos atrativos a suas mercadorias, de lhes sugerir novas necessidades etc. (G.l, p. 229).

O fato que os valores não devem somente ser produzidos, mas também realizados explica como nasce o grande paradoxo da crise devida a urna superprodução de mercadorias para as quais não há compradores. Uma sociedade na qual a miséria repousa sobre a penúria, mas sobre a superprodução deve suportar a contradição de continuar produzindo pobreza num meio de extrema prosperidade assim como os buracos negros no universo cintilante do comércio. No terceiro livro de O Capital, Marx explica que a produção de bens tem por limite a força produtiva da sociedade enquanto que a realização de seus valores tem por limite a capacidade de consumo da sociedade. Sustentado pelos proprietários do capital eles mesmos que procuram manter tão baixo quanto possível a capacidade de consumo de seus operários, ao mesmo tempo em que se interessam elevar ao mais alto ponto a capacidade de consumo máxima de todos os trabalhadores, essa contradição constitui para Marx, a causa última das crises e recessões decorrentes, as violentas erupções que restabelecem por um instante o equilíbrio rompido. Para escapar à crise é necessário alargar sem cessar o mercado, cada limite nada mais é que uma barreira a ser ultrapassada, mas a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital. Todo novo relance econômico traz em si a próxima crise: A produção capitalista tende sem cessar a ultrapassar os limites que lhe são imanentes, mas ela não surge a não ser que se empreguem os meios os quais, de novo, e a uma escala mais imponente, criem diante dela as mesmas barreiras. (C. 1, pp. 262-263).

O mundo capitalista no qual vivemos é um mundo estranho -- ao mesmo tempo uma grande ordem e uma grande desordem. Obedecemos todos a uma razão que não podemos influenciar; não é o caso, aqui, de gestão capitalista ou socialista, egoísta ou humanista, mas de boa ou má gestão. O pensamento único neoliberal que estima impossível imaginar outras formas de desenvolvimento que os homens estejam prontos a adotar se impõe de há muito tempo. A intercâmbiabilidade dos programas dos partidos políticos, por exemplo, essa tendência imperiosa para o centro é um sintoma dentre outros. Todas as intervenções ambiciosas na vida econômica que possam ousar os governos frequentemente têm efeito contrário desejado por seus autores e levam sua vida própria, se bem que as soluções de hoje são frequentemente os problemas de amanhã.

Os limites impostos pelas condições de existência tornaram-se desde há muito uma segunda natureza para os membros das sociedades ocidentais modernas. É o mundo ao avesso! -- pois nossa época é precisamente aquela que tem por modelo o indivíduo autônomo como se os sujeitos conscientes deles mesmos fossem donos de sua vida. O que quer que façamos, temos um comportamento ao mesmo tempo justo e falso. O que fizermos de falso é justo e o que fizermos de justo é falso. Servindo aos nossos interesses, nós nos prestamos um mau serviço. Quando um empresário aumenta os ganhos de seus empregados, ele não age somente por filantropia, sua ação é igualmente benéfica para o capitalismo em geral... senão corre o risco de incorrer rapidamente em bancarrota. Como para Shen Te de Brecht: as boas resoluções conduzem os homens à beira do precipício, as boas ações nele os precipitam. A razão econômica se impõe -- se-gundo Engels numa carta para Joseph Bloch -- como uma necessidade através da loucura infinita dos azares, como resultado de numerosas vontades individuais; resulta alguma coisa que ninguém quis. Visto assim, as forças econômicas são, desde o inicio, uma força de ninguém. A mais possante como a menos poderosa, nada mais são que dois comparsas de um teatro do mundo absurdo, prisioneiros de papéis dos quais não são autores. Esse teatro é, retomando a bela expressão de Althusser, em "Para ler o Capital" (Paris, PUF, 1946, p. 411), em sua essência um teatro sem autor. Vejam a história de um mundo automático, de uma máquina mundial que segue sua própria cabeça, de um piloto automático que ninguém consegue dirigir, história que Marx narrou naquilo que foi a obra de sua vida - esse mesmo Karl Marx que hoje certas pessoas qualificam, não sem razão, como um grande satírico.


* Robert Misik, jornalista austríaco, comunista militante é um dos fundadores de l’Offensive Démocrate e foi em 2.000 o principal organizador das grandes manifestações contra a participação do partido popular de direita FPO, no governo da Áustria.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O MUNDO AUTOMÁTICO OU UM TEATRO SEM AUTOR: O CAPITALISMO – A obra mestra de Marx: O CAPITAL -- Parte I (capítulo VI de Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.



                           
Robert Misik *

Tradução: Frank Svensson


Nova Economia e loucura bursátil; Dax e Dow Jones; mercados financeiros e economia real; inovação e produção; economia de mercado e lógica de rede; mobilidade do capital e divisão mundial do trabalho; comercialização de serviços, de matéria primas e de esperanças; multinacionais, investimentos diretos e alianças estratégicas; malhas complexas e estouro de bolhas; desregula-mentacão e intervenção do Estado; Toyotismo e Sillicon Valley; corporativismo e nova autonomia. Se procurássemos enumerar os termos pertencentes à língua franca da mídia econômica, nossa cabeça iria rapidamente explodir. A lista infinda dos neologismos não indica só o caráter exaltado dos escoteiros da tendência de querer dar um nome novo a tudo, mas ainda, que nosso capitalismo contemporâneo constitui uma estrutura misteriosa, em permanente e rápida transformação cuja dinâmica obedece a leis muito ocultas, difíceis de atingir.

Como funciona esse capitalismo? Questão posta com mais e mais frequência, provavelmente porque todos os belos sonhos de uma economia sem crise inventada nos anos 90, por expertos sérios da ciência econômica, foram seguidos de uma depressão geral. Em 2002, a economia mundial caiu num período de fraqueza. Reina também o pânico geral, principalmente porque as causas da crise ameaçam encontrar um nome tendo em conta que tudo está ligado: a psicologia, aos investimentos, à esperança de ganhos, ao estado dos estoques, às correntes migratórias, às crises comerciais, ao terrorismo mundial, às economias regionais.

São infindos encadeamentos de condições que se entendem: à Nova York terroristas kamikazes se arrebentam contra dois edifícios e as Bolsas se afundam, porque os assalariados norte-americanos, tomados de angustia quanto ao amanhã, reduzem seu consumo e, além disso, tiram seu dinheiro dos fundos de pensão, que, de todos os modos, não podem mais manter suas promessas de lucro; donde o dever, para os bancos alemães, de liberar seus corretores nas bolsas - o que só depende em parte da correção do euro face ao dólar. Eis o que, por sua vez, favorece o encarecimento das exportações da indústria europeia para os Estados Unidos e o aprofundamento da crise conjuntural.

As empresas produzindo menos são obrigadas de suprimir empregos; consequente-mente anunciam muito menos oportunidades de emprego nos grandes jornais, donde o licenciamento de jornalistas do Frankfurter Rundschau, da FAZ, e da Neue Zürcher Zeitung. Os artigos de seus colegas tornam-se pessimistas, o que não melhora o clima dos investimentos. Liga-se a isso outras 36 000 razões econômicas e não econômicas das quais não podemos nos ocupar aqui. Entendido? Senão podemos formular isso de outro modo: quando um saco de arroz é esvaziado na China, o Senhor Chose de Trifoullis-les-Oies deve trabalhar um mês para encher o vazio nas caixas de aposentadoria publicas. Que insondável mistério envolve a coerência de um sistema oriundo da combinação de inúmeras racionalidades parciais, de interações laterais, diagonais e antagônicas, de inter-relações para imbricar uma serrada malha, dotada de uma lógica própria na qual se interpenetram os assuntos.

Em 1935, Brecht descreve esse tipo de situação: Para uma certa peça de teatro, tive necessidade como pano de fundo a Bolsa de Cereais de Chicago: eu pensei graças a algumas perguntas a especialistas e práticos poder obter rapidamente os conhecimentos necessários. Mas a coisa virou noutro sentido. Ninguém, nem certos economistas conhecidos, nem os homens de negócios (eu procurei de Berlim à Viena um corretor que trabalhara toda sua vida na bolsa de Chicago) ninguém pode me explicar suficientemente os mecanismos da Bolsa dos cereais. Fiquei com a impressão de que esses mecanismos eram simplesmente inexplicáveis, o que quer dizer ainda que são despropositados. A maneira como os cereais de todo o mundo eram repartidos era simplesmente inconcebível. Não importa de que ponto de vista diferente do de um punhado de especuladores, esse mercado de cereais era um enorme pântano. O drama projetado não foi escrito. Ao invés disso eu comecei a ler Marx... (Notas autobiográficas. Paris, l'Arche, 1978 p. 185).

Brecht diz em sua peça Santa Joana dos Abatedores:

Nul ne peut rien contre les crises! Juste au-dessus de nous, destins inéluctables, Plannent ces inconues, les lois économiques. Les crises sont des catastrophes naturelles Dont un cycle effroyable ordonne le retour.

A economia humana constrói e destrói, cria a riqueza e a miséria, ela é sutil, duma lógica rigorosa e, no entanto maldizente. Ela engloba a sociedade mundial dividindo-a, ela despedaça as comunidades e mesmo os indivíduos. O que o princípio da rentabilidade é capaz de produzir como racionalidade absurda e, ao mesmo tempo estupefaciente, pode-se demonstrar de forma exemplar com os fundos de pensão recentemente vindos da América do Norte, conquistando o mundo inteiro. Quando, por exemplo, um operário de siderurgia cotiza um fundo de pensão, que transmite seus depósitos a um fundo de investimento, o qual, por sua vez, adquire partes da usina siderúrgica e impõe, uma supressão de empregos visando aumentar a rentabilidade, não o faz no interesse financeiro desse operário de se licenciar a si mesmo na sua qualidade de futuro aposentado? Esse capitalismo que empreendeu sua marcha triunfal e quase implacável em torno do mundo é, no entanto recheado de paradoxos; estável e sólido, é também precário, passível de perturbações e capaz de cambalhotas e piruetas. Como ao mikado basta pender com mais força numa parte da estrutura, para perturbar-lhe o equilíbrio. O que aconteceria se nosso operário siderúrgico se unisse a outros, possuidores eles também, de partes do mesmo fundo de pensão e, se, juntos, ordenassem aos administradores de capital de não se ater tão rigidamente ao princípio da rentabilidade? Pois bem, ele não será mais feliz por isso, pois nada mais fará que desencadear uma dinâmica desenfreada de destruição do capital.

Se sua fábrica deixar de racionalizar, ela será rapidamente arrasada pela concorrência capitalista, ele mesmo verá seu emprego fortemente ameaçado e suas economias perderão rapidamente a metade de seu valor - no melhor dos casos. Vemos, conseqüentemente, que as relações capitalistas submetem todo mundo a suas tácitas condições: os assalariados tanto quanto os detentores do capital, os grandes como os pequenos. O que vale para o mundo estritamente econômico vale também para a estrutura social de forma geral.

Seria muito simplista imaginar sociedades modernas duais com classes superiores dominantes e classes inferiores impotentes. Desde o estruturalismo de um Michel Foucault, mais de esquerda, à teoria sistêmica atual acomodada na ordem estabelecida, o conjunto da sociologia moderna tem em conta essa situação. Se, para os primeiros, o poder e antes de tudo uma malha cujos nós encontram-se eles mesmos em prejuízo com relação a outros nós do poder, para os segundos a intervenção dos sujeitos num sistema tão sutilmente construído não é mais nem pensável nem viável - mesmo para os mais poderosos.

A melhor coisa que a política seja ainda capaz nessa perspectiva e de bajular sem principio, de evitar o pior, pensa o sociólogo alemão recentemente falecido Niklas Luhmann, (Die Politik der Gesellschaft - Frankfurt- /Main, 2002), pois toda intervenção no desenvolvimento autônomo do sistema provocará um sem número de consequências imprevistas, que seriam, por sua vez, a origem de novas problemas. Uma intervenção racional na lógica dessa sofisticada rede não seria, portanto possível, a não ser que a sistema politico -- ou seja, a casta dos governantes profissionais -- tivesse em conta mais dados ambientais que os disponíveis  Como isso ha muito tempo não é possível, o poder dos poderosos se choca com a tenacidade do sistema. Então é preferível que não se toquem para não ficar pior - o que vale por mais forte razão também quanto ao poder dos fracos.

Paradoxalmente, esta ciência social deve muito a Marx - mesmo que este tenha sobremaneira em seu coração os pobres. Se nos consagrarmos agora as analises econômicas que dominam a obra madura de Marx - sem esquecer que se trata então de um homem entre os trinta e os quarenta anos - lembrando como Marx se tornou economista. 0 objeto de meus estudos especializados era a _jurisprudência a qual, rio entanto, eu não me dediquei a não ser coma a uma disciplina subalterna, ao lado do filosofia e da história, escreveu ele em seu celebre prefacio da Contribuição a Critica da Economia Politica (p. 3), publicada em 1859 -- analise relativamente longa das teorias econômicas existentes que serviu de estudo preliminar a 0 Capital.

Em 1842-43 em minha qualidade de redator da Reinische Zeitung, encontrei-me pela primeira vez, na obrigação embaraçosa de dar minha opinião quanto aquilo que denominamos interesses materiais. As deliberações do Lantag renano sobre furtos de madeira e a divisão da propriedade fundiária.  Enfim os debates sobre a livre troca e o protecionismo forneceram-me os primeiros motivos para ocupar-me de questões econômicas. Marx visava a economia como filósofo e como vimos nos Manuscritos de 1844, concebia o universo capitalista como um mundo de coisas criadas pelos homens, um mundo alienado percebido pelos homens como potencia estrangeira. Quando ele observava a situação economica, sua interrogação não era para cron. a abstração hermética das condições econômicas, mas recuado, como que de um passo. A questão por ele posta geralmente era mais do gênero: quais ações humanas estão na origem dessa forca das coisas? Marx conservará esse método mesmo quando, obedecendo ao espirito do século, tentará analisar as leis do capitalismo numa perspectiva estritamente cientifica.

Numa época em que o público estava fascinado pelo progresso da pesquisa em física e em química, adotar uma atitude rigorosamente cientifica, significava orientar-se aos métodos das ciências naturais. Marx não podia se subtrair à ação desse espirito do século, contaminando seu pensamento aqui e acolá, por incrustações positivistas e naturalistas, escreve Gramsci (p. 47). Como nós veremos mais adiante, são as extrapolações positivas desse gênero que ocasionaram a maior parte dos erros e más interpretações que contem 0 Capital. Portanto, Marx sabia bem que era impossível submeter a analise da sociedade capitalista aos métodos das ciências naturais. Além do mais a analise das formas econômicas, escreve ele no prefacio da primeira edição alemã de 0 Capital, não pode se apoiar no microscópio ou em reativos apresentados pela química; a abstração é a única força que pode lhe servir de instrumento (C. I. p. 18).

Em sua analise da economia, Marx continua filósofo. O que prova não só a argumentação de O Capital e de seus estudos preliminares, mas também o fato que lhe levou quase uma eternidade para terminá-la. Ele começa seus estudos econômicos em 1850 e não termina o primeiro volume de O Capital antes de 1867. Em parte, por reunir toneladas de documentos e passa, dias após dia, ano após ano, no British Museum, a refletir sobre estatísticas sempre novas e sobre relações mais e mais detalhadas. Mas igualmente, porque se deixa distrair por toda sorte de atividades polemicas e revolucionárias. E principalmente, enfim, porque ele se tortura a simplificar a complexidade da realidade econômica às causas mais sutis e múltiplas, para redigir uma análise do tamanho de um livro, deixando tudo compreensível àqueles que querem aprender algo de novo e consequentemente, também pensar por eles mesmos. (C. 1. 1 p.18). Sua primeira tentativa termina em 1858, sob a forma de folhetos de forma comprimida, os quais, impressos fazem quase mil páginas inacessíveis ao leitor não iniciado - o que era o caso de todo mundo naquela época, a exceção de Engels. Marx arruma logo esse manuscrito. No entanto - ou justamente por este motivo - esse compendio, que será publicado em Moscou em 1939 sob o título: Esboço da crítica da economia política, revela mais claramente o arrazoado de Marx, que não fará imediatamente, O Capital. Pois sua fraqueza é também sua força, desde que ainda está isento de simplificações como o contém forçosamente sua versão mais popular (Trata-se do texto conhecido como Manuscritos de 1857-58).

Não resta outra coisa que as concessões feitas ao popular sejam mínimas. Ensaios científicos com vistas de revolucionar uma ciência não podem jamais ser verdadeiramente populares, lemos numa carta escrita para seu amigo Kugelmann em fins de 1862 (Cartas sobre o Capital, p. 131). Como os Grundrisse. O Capital não é uma acusação contra os capitalistas, mas uma análise do princípio capitalista. No prefácio de O Capital, Marx observa: Para evitar possíveis mal-entendidos... Eu não pintei em rosa o capitalista e o proprietário imobiliário. Não se trata aqui das pessoas em si, mas da personificação das categorias econômicas, suportes de interesses e de relações de classes determinadas. Meu ponto de vista, a partir do qual o desenvolvimento da formação econômica da sociedade é semelhante à marcha da natureza e sua história, pode menos que tudo o demais tornar o indivíduo responsável de relações nas quais ele é socialmente a criatura, independente do que posso fazer para se libertar. (C.I.,1, p. 20).

As relações capitalistas tornaram-se depois de muito tempo um poder sem sujeito sobre os sujeitos e se eles justificam a liberdade relativa da sociedade burguesa, é justamente porque não precisam mais de poder sobre as pessoas. Retirai dessa coisa este poder social e tereis que entregá-lo a pessoas submissas a pessoas, proclamava já Marx; na sociedade burguesa a independência pessoal é baseada numa dependência objetiva (G. I. p. 93). Ele explica, numa carta a Kugelmann, que o fabricante tomado individualmente não pode fazer muita coisa. Quais sejam os resultados empíricos das condições capitalistas, no conjunto isso não depende da boa ou da má vontade do capitalista individual (Cartas sobre O Capital, p. 201). Na obra de Marx, os capitalistas não fazem cara de maus a não ser quando utilizam seu poder econômico para obter o poder político – e este para defender um status quo social anárquico. Então os proprietários de imóveis e proprietários do capital se servirão sempre de seus privilégios políticos para defender e perpetuar seu monopólio econômico  atraem a sí as farpas atiradas por Marx em sua mensagem inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores. (Paris, Le Temps des Cerises, 2002).

Constatamos quanto, em seu estudo do processo natural e histórico da formação capitalista da sociedade, Marx transige pouco, finalmente, com o positivismo de merda que denuncia numa carta dirigida a Engels em 1866, depois que ele inicia O Capital por um capítulo complicado sobre a mercadoria. À diferença dos capítulos sobre a transformação do dinheiro em capital ou sobre a produção da mais valia, este é um capítulo sem muitas formulas, em revanche, supõe que o leitor saiba lidar com os paradoxos filosóficos caros a Marx. Num estilo satírico, Marx ressalta os dois aspectos de um produto qualquer destinado a se tornar mercadoria: notadamente o fato de que o produto possui tão bem um valor de uso que um valor de troca, e expõe que, se o valor de uso implica o valor de troca, só o valor de troca faz da mercadoria uma mercadoria permitindo que esta se troque por outras espécies de mercadorias e por uma forma específica de mercadoria: o mercadoria-moeda. Depois, nos faz ver que todas essas formas de mercadoria, independente do que as distinga, tem em comum o trabalho nelas investido e cuja quantidade só determina o montante do valor.

A seguir, Marx se debruça sobre o caráter fetiche da mercadoria e seu segredo. Uma mercadoria parece num primeiro momento algo de trivial que se contem em si mesma. Nossa análise mostra ao contrário ser uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. (C.1, 1, p. 83). Reencontramos aqui a argumentação dos Manuscritos de 1844. O segredo da forma mercadoria é simples: ele reflete o caráter social do trabalho humano, o caráter concreto do produto do trabalho como propriedade natural, histórica das coisas; a relação social dos produtores do trabalho resultam numa relação social dos objetos concretos existente em torno dos mesmos (MEW. 23, p. 86).

Da alienação resulta o fetichismo da mercadoria: como ídolos, as mercadorias são produzidas pelos homens, reagem aos homens e suscitam, por sua vez, reações humanas como se tivessem uma vida própria. Como movidas por uma mão fantasma, quanto mais elas recuam mais os homens aspiram a elas. Lá os produtos do cérebro humano aparentam serem independentes, dotados de corpos particulares, em comunicação com os homens e entre eles. Trata-se mesmo de produtos da mão do homem no mundo mercantil. É a isso que podemos chamar de fetichismo... (C. 1, 1, p. 85) No valor de troca as mercadorias adquirem uma figura fantástica, distinta daquela de sua realidade o valor não trás escrito na testa o que é. De cada produto do trabalho faz bem mais um hieróglifo que os homens perderam a capacidade de entender (C. 1, 1, p. 86).

Uma mesa em madeira, uma coisa ordinária que tomba sobre os sentidos se transforma desde que se apresente como mercadoria, como uma coisa ao mesmo tempo perceptível e imperceptível e ... sobre seu tampo de madeira ... se expõe a caprichos mais bizarros do que se ela se metesse a dançar. O válido para uma mesa em madeira vale também para um pedaço de terra, para pérolas, para diamantes Até agora nenhum químico descobriu valor de troca numa pérola ou num diamante (C.I, 1, p. 94). Marx conclui com humor que o valor, esse misticismo, toda essa magia e fantasmagoria não têm nada a haver com a natureza perceptível da coisa, ela não se encontra na pedra preciosa, não nasce nem da terra nem da madeira, ela é fruto da sociedade.


* Robert Misik, jornalista austríaco, comunista militante é um dos fundadores de l’Offensive Démocrate e foi em 2.000 o principal organizador das grandes manifestações contra a participação do partido popular de direita FPO, no governo da Áustria.


Segue Parte II >

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

SURPRESAS E DÚVIDAS QUANTO A VIDA E OBRA DE LOUIS LÈGER VAUTHIER

(Faits et interrogations concernant la vie et l’oeuvre de  Louis-Leger Vauthier : temoignage).

Frank Svensson *

(Comunicação apresentada em colóquio realizado em Recife e posteriormente incluído num livro a respeito, publicado na França; Un ingeniéur du progrès Louis Lèger Vauthier entre la France et le Brésil – Pernambouc 1840-1846. Michel Houdidard Editeur, Paris 2010)

Ce chapitre, sous forme de témoignage, cherche à faire ie rapprochement  entre mon parcours professionnel d’architecte et mon parcours personnel de militant de gauche avec celui de Louis-Leger Vauthier, ingénieur, arcchitecte et introducteur des idees socialistes au Brésil.

Mon intérêt pour Ia vie et L'œuvre de Louis-Léger Vauthier prend sa source dans de nombreux dornaines. À l’ occasion d’un séjour long de huit ans à Recife, je me suis rapidement intéressé à la vie et à l'œuvre d’architectes étrangers, ayant laissé leur empreinte sur cette ville. Parmi eux, Vautnier se détache évidemment du lot.

Lors de mon séjour de deux ans en France, durant mon long exil en Europe, imposé par le régime militaire au Brésil, j’ai effectué dans des archives françaises, des recherches sur les trois principales périodes de Ia vie et de L'œuvre de Vauthier: celle qui a précédé sa venue au Brésil,celle qui couvre son séjour dans notre pays et celle postérieure à son retour en France. Cet article contient donc quelques informations sur deux premieres périodes de Ia vie de Vauthier, mes recherches en cours étant vouées a apporter d’autres informations sur la troisième période .

Falar de Vauthier limitado apenas em vinte minutos é um desafio. Para não repetir o que aqui já foi dito, resumo minha fala tornando públicas algumas surpresas e dúvidas surgidas ao Iongo de minha pesquisa  sobre sua obra e sua vida. A primeira grande surpresa foi constatar o quanto Vauthier é representativo de uma significativa transição histórica, da passagem da Sociedade ocidental do período de produção artesanal para o período industrial. O artesanato e a artesania como que haviam atingido o ponto  máximo de desenvolvimento possível, dando o salto para a condição de indústria.

As estradas da França camponesa eram usadas por pedestres e carruagens de tração animal. Cargas mais pesadas eram transportadas com a ajuda de cursos d’água ligados às estradas. Grandes batelões os singravam, tracionados por animais a partir das estradas. Raramente com apoio de velas e ventos. O pai de Louis, Pierre Vauthier, era engenheiro politécnico conhecido e reconhecido como especialista em cursos d'água  Já como estudante da École Polytechnique em Paris, Louis teve seu primeiro estágio prático permitido junto ao pai, em Dordogne.

Contemporâneo foi o surgimento da máquina a vapor. Aplicada a transportes, fez surgir a locomotiva e os barcos a vapor. Quando de seu segundo estágio prático, Vauthier reivindicou à direção da escola a permissão de fazê-lo na primeira fábrica de locomotivas instalada em Paris.

O advento do período industrial implicou muitas previsões quanto às influências de novo ferramental nas relações sociais vigentes e na configuração dos lugares a elas adequados. A partir de uma cultura marcada pelo humanismo católico,  evidenciaram-se na Franca os socialistas utópicos Charles Fourier e Claude-Henri Saint-Simon. Na Ècole Politecnique, o professor Victor Considerant reanimava os princípios fourieristas lançando a Ècole Societaire, da qual Vauthier faria parte. Foram amigos pelo resto da vida.

Eu gostaria de mencionar um quarto nome influente na formação da visão de mundo de Vauthier, o de August Blanqui, mais conhecido por sua posterior liderança na Comuna de Paris.

A formação profissional de Vauthier deu-se na transição das engenharias militares para as civis. Os alunos politécnicos conjugavam o caráter militar ao universitário. Entre 1835 e 1839 participaram de vários movimentos insurrecionais liderados por August Blanqui, resultando em 1839 em detenções de estudantes politécnicos. Vauthier, então, aceita um convite para vir trabalhar em Recife, interrompendo seu curso, seu noivado e suas práticas profissionais. Há de se perguntar se o convite para trabalhar em Recife não lhe foi conveniente e confortável.

Vauthier inicia no Brasil uma dualidade inerente ao exercício profissional no período industrial: resolver problemas das elites com a mais desenvolta competência e habilidade possível, sem atender às necessidades da maioria de destituídos. Para tanto se faz necessário o concomitante engajamento em formas socialmente organizadas. Temos entre nós o extremo oposto no tempo, expresso por Oscar Niemeyer, com quem trabalhei por um curto período e que é frequentemente acusado de não propor arquitetura para pobres. Acontece saber ele que o problema da pobreza não se resolve à escala individual.

É complexo, exige formas complexas de solução, e o instrumento mais eficiente que a história nos apresentou para tanto foram os partidos obreiros. Vauthier chega ao Brasil como politécnico e fourierista saintsimoniano militante. É curioso observar que, de volta à França, não abandona tal posicionamento, mas o canaliza para uma longa militância como socialista republicano. Aquele país deixara de ser República, passando a condição de monarquia representativa, enquanto em Recife se olhava de soslaio para a experiência republicana desenvolvida nos Estados Unidos da América do Norte. Será que reflexões feitas em Recife influiriam na posterior militância na França?

O diário intimo de Vauthier, publicado por Gilberto Freyre em Um Engenheiro Francês no Brasil, constitui-se no único livro a seu respeito. Ora, diário intimo é algo que se escreve para si mesmo, em linguagem intimista. O que melhor revela o que Vauthier fez no Brasil são os seus minuciosos relatos de trabalho reunidos no Arquivo Púbico de Pernambuco. Urge restaurá-los, em que pese o muito que já se perdeu por efeito de traças e umidade. Uma análise minuciosa deles resgataria a verdade histórica em vários casos. Cito somente um, o do Cemitério de Santo Amaro.

Trata-se do primeiro cemitério laico e público do Brasil, senão de toda a América Latina. Por muitos é tido como de autoria do Engenheiro Mamede Ferreira, em muitos projetos um sucessor de Vauthier. É deste, no entanto, a autoria do projeto original.

Vauthier não era religioso. De volta à França, participa de uma sociedade defensora da laicidade. Publica, junto com Charles Chassin, uma revista a respeito. Preenche inclusive um formulário abdicando de um enterro religioso. Para Recife propõe um cemitério em forma de frondoso parque em local fora do perímetro urbano, onde antes eram lançados cadáveres de escravos. Simples, sereno e sem simbologia religiosa. E depois Mamede Ferreira propõe uma capela mortuária em estilo neogótico, fazendo com que o original cemitério ganhasse a condição de Campo Santo devidamente cristianizado.

Em seu livro sobre Vauthier, Gilberto Freyre acrescentou ao diário íntimo um conjunto de cartas denominadas de brasileiras. Durante muito tempo imaginei que tivessem sido enviadas do Brasil. Só conhecendo melhor o período posterior a sua volta a França é que fui descobrir terem sido escritas em Paris.

Vauthier foi rapidamente eleito deputado da  Assembleia Legislativa Nacional, em 1849. Seu mandato durou pouco, pois se envolveu logo com o levante armado de julho naquele ano. Preso, foi condenado pela Alta Corte de Versalhes à deportação. Deportação era um termo jurídico que não levava necessariamente a ausentar-se do país, e sim a ficar confinado em prisão exclusiva para presos políticos. Esteve em três, sucessivamente. Na última, estava preso também Proudhon (o personagem citado por Engels em seu livro sobre a questão da habitação). Proudhon teve direito na prisão a usar um  escritório a partir do qual dirigia seu jornal: La Voix du Peuple. Uma vez em liberdade, instou junto à administração da prisão para que Vauthier ocupasse tal escritório. Foi a partir desse que escreveu seus artigos (inclusive as chamadas cartas brasileiras) publicadas na revista de Cesar Daly, Revue d´architecture et des Travaux Publics, bem como seu trabalho sobre o Imposto Progressivo.

Proudhon continuou lutando pela libertação de Vauthier. Consegui-la foi  sob a condição de que Vauthier deixasse a Franca. Nesse período ele vai trabalhar com os cursos d’agua em Veneza, com a perfuração do túnel Simplon e com a construção do grande canal de retificação de rio Ebro, no trecho entre Zaragoza e Barcelona.

Neste último minuto que me é dado, e décimo nono, quero tornar público que Vauthier foi meu mestre. Ninguém como ele me adentrou tão intensamente no conhecimento do industrial da sociedade ocidental.

Tenho dito.

*Frank Svensson, arquiteto e professor da UNB, é membro da Comissão Política Nacional do PCB

domingo, 24 de fevereiro de 2013

TONY GARNIER E SUA ANTEVISÃO DO SÉCULO XX


Peter Bredsdorf – Arquiteto dinamarquês (1913–81). Professor catedrático da Escola Superior de Belas Artes de Copenhague.

Tradução: Frank Svensson

                  Tony Garnier 1899


La Citè Industrielle de Tony Garnier

Em 1901 o jovem arquiteto francês Tony Garnier expôs na Academie des Beaux—Arts de Paris um anteprojeto de urna cidade industrial. Não obteve nenhum reconhecimento, mas sim amargas criticas. Mostrou-se, no entanto, depois, que esse projeto era um precoce prenúncio do funcionalismo, na forma em que se expressou nos anos 1920. Tratava-se, na realidade, simplesmente da forma de um artista antever o novo século. Esse projeto localiza-se de forma surpreendentemente solitária no tempo, não só em relação ao passado corno também à sua época. Muitas circunstâncias em torno do mesmo permanecem nebulosas. Pretendemos, com este trabalho, narrar um pouco sobre o contexto e o autor do projeto.

Grandes cidades da Europa ocidental do século XIX é um conceito amplo mas ao mesmo tempo uma caracterização bastante válida. São as cidades do século no qual a burguesia veio ao poder com suas novas concepções de liberdade, dando, inclusive, liberdade à iniciativa privada de agir sem a intervenção dos interesses públicos.   vigoroso desenvolvimento industrial e a mudança em massa para as cidades.  O crescimento sem planejamento, a desenfreada especulação imobiliária e um sem fim de fábricas poluentes. Péssimas condições sanitárias e habitacionais e a liberdade de abusar do direito de explorar a miséria humana. Os privilegiados buscando guarida nos melhores enclaves do centro urbano ou em áreas reservadas às suas mansões na periferia. A transformação das áreas centrais em quadras de serviços e escritórios segundo imponentes projetos. Áreas da preferência dos visitantes da cidade, sem contato com a miséria da periferia e do entorno. Situação ainda hoje reconhecida em nossas próprias cidades.

Inicialmente, esse desenvolvimento deu-se em relação a cidades inglesas. Rapidamente atingiu, também, a França e a Alemanha. Nada mais natural que personalidades engajadas nos problemas sociais buscassem alternativas para tal forma de crescimento urbano. Buscavam bases de maior justiça social e de um modo de vida mais sadio, sobre as quais organizar o binômio indústria/habitação. Na primeira parte do século, por meio de propostas como as das industrial villages e dos phalanstères, de autoria, respectivamente dos utopistas Robert Owens e Charles Fourier. Mais realista foi um conjunto de iniciativas de grandes industriais — a partir de seus bem intencionados interesses — construindo cidades modelo junto a suas fábricas e as iniciativas de sociedades filantrópicas construindo conjuntos habitacionais modelo, mas foram diminutos experimentos, corno agulhas no palheiro do crescimento urbano. As epidemias grassavam mesmo quando as leis cobravam condições de higiene por meio da aprovação dos projetos de moradia e construção. A simples necessidade de uma certa ordenação do suprimento de água e da rede de esgotos transformou o planejamento urbano numa questão de ordem técnica. Outra forma de planejamento urbano foi o drástico embelezamento de Paris, recortando os superpovoados quarteirões da cidade com largos boulevards canteados de novas fachadas. Essa demonstração de força suscitou a admiração dos demais países da Europa e foi repetida em escala menor em muitas cidades. Mas os novos assentamentos que surgiam no entorno das cidades existentes, graças ao direito de propriedade privada, foram difíceis de manter sob controle.

Em termos de planejamento urbano os arquitetos, inicialmente, limitaram-se sobremodo às áreas centrais com ambiciosos projetos como, por exemplo, o da Ringstrasse para o campo de tiro da Viena velha. O austríaco Camillo Sitte defendeu, no fim do século passado, uma nova forma de se configurar cidades a partir de pressupostos artisticos. Desejava urna nova criação baseada na riqueza fruitiva e vivencial dos espaços e lugares das cidades medievais. Outros achavam que o desenho urbano devia ser consi-derado a partir de ideais rigidamente clássicos. Com relação ao crescimento das cidades como fenômeno social, os planejadores da época não apresentaram nada de novo. Reportaram-se aos utopistas já havidos. A exceção foi Ebenezer Howard com sua ideia de cidade-jardim, apresentada em 1897. Queria simplesmente estancar o crescimento malsão das cidades e dirigi-lo para assentamentos industriais autônomos, que não fossem maiores do que a capacidade de reunir as vantagens de se morar na cidade com as vantagens de se morar no campo. Afirmava humildemente só haver destacado uma página da obra de cada utopista juntando às mesmas, num livro, as implicações da concretização das respectivas utopias. A construção de uma cidade jardim foi iniciada ao virar o século. Mais uma agulha no palheiro.


Lyon, centro regional

A cidade de Lyon, a terceira da França em tamanho, sofria, para bem e para mal, principalmente para mal, as consequências do crescimento de uma cidade grande. Um centro mundial da indústria da seda, mas também com grandes fábricas de maquinaria e de produtos químicos. Uma cidade onde notáveis invenções foram lançadas  onde novos ramos industriais vieram á luz, mas onde os trabalhadores para ali atraídos eram pessimamente alojados e alimentados. Uma cidade onde, por volta de 1830, ocorreram algumas das primeiras manifestações obreiras de protesto da Europa ocidental, e depois disso durante muitas gerações foi importante centro de resistência socialista.

A região de Lyon tem, ainda, um importante lugar no regionalismo do século XIX, marcado pela compreensão das relações existentes entre o contexto físico próprio e o desenvolvimento econômico e cultural. Na França a defesa da vinculação da população com sua região transformou-se cedo numa forma de protesto contra o acentuado centralismo do governo nacional, e foram cientistas franceses os que primeiro se ocuparam com questões regionais. (Na Inglaterra o regionalismo começou a ser formulado por Patrick Geddes, que apenas deu continuidade às ideias já desenvolvidas na França, aperfeiçoando-as como instrumento de planejamento). A cidade de Lyon passou por consideráveis transformações na segunda metade do século XIX. Já nos anos 1860 foi objeto de trabalhos de saneamento urbano tendo Paris corno modelo. Em 1880 realizaram-se vários projetos de renovação urbana com um enfoque nitidamente sanitarista, c em 1900 foram implantadas instituições de educação e outros serviços dignos de uma metrópole regional.


Tony Garnier o arquiteto de Lyon

Esse contexto teve, sem dúvida, importância para o jovem arquiteto Tony Garnier, que nasceu em 1869 e cresceu num dos melhores bairros operários de Lyon. Estudou arquitetura na Academia de Belas-Artes daquela cidade entre 1886 e 1889. Não sabemos se as suas primeiras imagens de urna cidade e da arquitetura do futuro surgiram com ele ainda aluno. Em 1889, foi contemplado pela Academia de Lyon com uma bolsa para formação continuada em Paris. Ali chegou portanto no ano da grande exposição internacional — a exposição da qual a maioria se lembra por causa da torre Eiffel. Passou com facilidade pelos exames de admissão à Academie des Beaux Arts, cursando com energia as disciplinas ali oferecidas. Era sua intenção obter as melhores menções, no sentido de conquistar o Prix de Rome, o que conseguiu em 1899. Essa distinção deu-lhe o direito de estagiar durante alguns anos na renomada academia francesa sediada na Villa Mediei em Roma.

       Tony Garnier: perspectiva de uma cidade do futuro.

A obrigação dos bolsistas era familiarizar-se com estudos de restauração de monumentos da Antiguidade. Já na chegada a Roma, Tony Garnier estava firmemente convencido de que sua missão principal era demonstrar como urna cidade do futuro poderia ser configurada. Mas na bicentenária instituição que o abrigava não havia mais compreensão para tais experimentos do que em Paris, muito pelo contrário. A academia de Roma comunicou a Paris que o comportamento de Garnier não era condizente com a época, e os esboços de uma cidade do futuro que ele apresentara e expusera em Paris em 1901 foram simplesmente destruídos.

De nada lhe valeu argumentar que urna cidade moderna pode perfeitamente ser inspirada no antigo — algo de que estava plenamente convencido e que defendia tanto no seu projeto como antes. Para poder continuar seu trabalho em Roma, dedicou-se à reconstrução de toda uma cidade da Antiguidade: Tusculum ou Tusculo cidade da antiga Itália (Lácio); hoje Frascati.  Possuía uma história de cidade satélite de Roma, com mais de 50.000 habitantes, mas fora destruída nos anos 1100. A nova ocupação de Garnier não despertou admiração, mas foi aceita e bem mais tarde veio a ser muito reconhecida. 

Voltando a Paris, em 1904, a reconstrução de Tusculum tornou-se objeto de exposição  e foi aceita como seu trabalho principal. Foi autorizado, no entanto, a expor também, como complemento a seu trabalho de Prix de Rome, os esboços de sua cidade do futuro, sem dúvida urna provocativa atividade extracurricular. O material elaborado por Garnier entre 1901 e 1904 não é conhecido, com exceção do plano diretor por ele divulgado. Sabe-se, no entanto, que além desse plano foram expostos muitos esboços sobre detalhes da cidade por ele proposta. Nem de parte da Academia em Paris nem da imprensa especializada surgiu alguma manifestação de estímulo ao trabalho de Garnier. A única referência positiva veio de um periódico de sua própria cidade: Construction Lyonnaise. Garnier desapontado esteve a ponto de emigrar da França. No entanto deixou-se convencer a ficar, em função de um emprego municipal oferecido a ele em Lyon. Suas primeiras incumbências foram o seu famoso projeto de abatedouros, um grande hospital, um estádio municipal, uma exposição internacional em Lyon, etc. Ao mesmo tempo, participou de vários concursos, dando-se tempo, ainda, de desenvolver o projeto de uma cidade do futuro. Em 1917 teve este trabalho publicado em dois volumes, com 164 pranchas, sob o título Une cité industriei/e, Étude pour La Construccion des Villes.


A visão urbana de Garnier

A obra segue um programa bastante sucinto e é parcimoniosamente descrita. Apresenta urna cidade numa paisagem imaginada. configurada inteiramente a partir do plano geral, com planos parciais de bairros de distintas funções. Com soluções habitacionais diversas e até detalhes de interior e de exterior de prédios institucionais, residências e fabricas. Tudo avivado por perspectivas aéreas da cidade, de sítios urbanos, de ruas, de casas e de interiores. Um grandioso trabalho, ilustrado por ideias inusitadas de construção e arquitetura urbana, apresentadas por um arquiteto francês na virada do milênio (1900).

O programa formulado individualmente por Garnier pode ser descrito como de uma cidade moderna, tendo a indústria como principal elemento configurador, localizada em sua região de origem, o sudeste da França. Idealizou a cidade com uma população de 35.000 habitantes, não por achar que essa fosse uma quantidade ideal, mas por considerar que uma cidade menor não teria os problemas que gostaria de abordar arquitetonicamente, ao mesmo tempo que uma cidade maior seria impossível de manusear da forma por ele desejada. Em sua imaginada paisagem havia ainda uma micro-região, campos de lavoura capazes de nutrir a população urbana, um rio como via de transporte dos produtos industrializados. um afluente capaz de produzir energia elétrica, luz e aquecimento para toda a cidade. Pressupunha que a rede viária, o transporte, a água e o esgoto seriam de responsabilidade pública. Seria de responsa-bilidade pública também, a definição do uso do solo, o loteamento do mesmo, o 

   . Plano esquemático da Cité Industrielle, 1904-1917

do mesmo, o abastecimento, a saúde e o lixo. Ideias essas bastante avançadas para um tempo em que qualquer planejamento de cidade era bloqueado pela propriedade privada da terra e por um enfoque avesso à intervenção do setor público em assuntos que poderiam ser resolvidos por empreendimentos particulares.


    Tony Garnier - Citè Industrielle vista do centro e do setor industrial 

Em seu conciso e austero texto. Garnier confronta sua nítida divisão da cidade em áreas de função especifica com a contínua ampliação da diversificada constituição urbana. Justifica a divisão da cidade — quadras estreitas, dispostas no sentido lesteoeste — invocando a orientação dos ventos e a melhor incidência solar. Exige sol direto em todos os quartos de dormir, proíbe palcos internos, proíbe uma ocupação superior à metade do terreno c proibe muros divisórios entre as casas. As partes verdes, entre as casas, devem relacionar-se formando urna espécie de parque de livre acesso aos pedestres. O tráfego de veículos é vinculado a urna rede viária de fácil compreensão, com urna via principal no sentido leste-oeste partindo da estação da estrada de ferro. Ruas com características distintas são arborizadas de forma distinta.

Apesar do grau de detalhes apresentado, a ideia básica do projeto parece haver existido desde 1904, ou até mesmo desde 1900. Há no projeto uma concordância incomum entre a totalidade e os detalhes, impregnada por um conceito arquitetônico no qual só o simples, o prático, o verdadeiro são aceitos como belo. Um conceito que já relatara a partir de Roma, em 1901. quando remeteu a Paris os seus primeiros esboços. Um claro enfoque capaz de analisar e dispor o caráter básico da cidade relacionado a seus elementos mais simples. Um desejo de não deixar nenhum problema sem solução. Do ponto de vista da técnica urbanística a novidade da cidade de Tony Garnier consiste na clara diferenciação de funções com um sistema viário também claramente diferenciado. Algo surpreendente numa época em que ninguém previa como iria se desenvolver o tráfego urbano.

Do ponto de vista da conformação urbana, nega totalmente o formato comum — variado c surpreendente ou rígido e bem proporcionado — das ruas e dos sítios urbanos da Europa. Garnier queria a cidade verde, como se as casas estivessem em um parque. Mas os prédios não seriam simplesmente distribuídos no verde, deveriam configurar uma disciplinada paisagem urbana em nítido contraste com as áreas cultivadas e a natureza do entorno. Um contraste marcadamente expresso pela localização da cidade num plateau delimitado por um majestoso muro de arrimo voltado para o vale ao sul da cidade. Arquitetonicamente, a mensagem de Garnier comunica sua consequente exigência de que os prédios expressem as funções. os lugares neles contidos e os processos construtivos inerentes aos diferentes tipos. Um grau de honestidade que, segundo Garnier, contém em si o belo, urna beleza capaz de ser enriquecida por esculturas em interação com os prédios e com a vegetação.


Quem influenciou Garnier e a quem ele influenciou?

Vários historiadores da arquitetura e do urbanismo têm se ocupado em esclarecer quem e o que na virada do século teria influenciado Garnier em seu trabalho com a Cité Industrielle. Para vários dos prédios unitários é possível encontrar referências mais e menos seguras. O debate europeu sobre a configuração urbana pouco o interessou. Há escritores, no entanto, que acreditam achar traços de Sitte em seu trabalho (o livro de Camillo Sitte foi traduzido para o francês em 1902), ou em sua rede viária retangular, encontrar traços dos classicistas. O verossímil no entanto é que tenha se sentido mais influenciado pela tradição urbanística francesa e pela observação da racionalidade das cidades coloniais da Antiguidade. Deve ter acompanhado o avanço técnico contido na solução dos grandes projetos públicos de sua época.

Quando, em 1910, recebeu a incumbência de projetar o hospital de Grande Blanche, fez uma viagem de estudos à Alemanha e à Dinamarca. Em seu relatório de viagem salienta de forma especial a construção iniciada do hospital de Bispebjerg, em Copenhague, com seus departamentos distribuídos como pavilhões ligados por um sistema de transporte subterrâneo. Esse hospital foi visto por ele como urna cidade-jardim para doentes. Quem não gostaria de haver assistido a A Casa da Cultura. um debate entre seu autor Martin Nyrop e Tony Garnier? Um nacional-romântico e o outro internacional-racionalista.*


      Tony Garnier, Citè Industrielle, Casa da Cultura.

Muito poucos são propensos a crer que Garnier tenha sido influenciado por Ebenezer Howard. embora o livro To Morrow de Howard, já houvesse sido traduzido para o francês em 1903 e que ele estivesse trabalhando na implantação de uma cidade de 32.000habitantes (Letchworth). ou seja, mais ou menos do mesmo tamanho que a cidade de Garnier. Howard defendia a propriedade comum do solo urbano e que o assentamento urbano fosse cercado de áreas cultivadas para o seu auto-sustento. Apesar de apresentarem pontos em comum, as duas propostas tinham caráter muito distinto. Howard ilustrara sua proposta com diagramas, tratava-se, portanto, de um modelo aplicável a diferentes situações concretas. Garnier projetou urna cidade concreta para uma paisagem imaginada. Howard não desejou que sua cidade crescesse além do tamanho pensado — entre outros impedimentos haveria o da faixa verde que circundaria a mesma. Sua cidade era circular e concêntrica. denunciando uma forma estática.

A conformação da cidade de Garnier permitia o crescimento não só da cidade, mas também de suas partes especificas. Mais comum do que atribuir a Garnier um influência do tipo garden-city é dedicar-lhe urna postura socialista e ver a sua cidade do futuro como a concretização das visões de Charles Fourier na primeira metade do século XIX. Além disso, Fourier escrevera seus textos na cidade de Lyon. Suas ideias quanto a cidades industriais menores de novo tipo se concretizaram com o familistère construído por iniciativa do industrial J. B. Godin junto à sua fundição em Guise, no norte da França, entre 1860 e 1880, depois transformada numa cooperativa de trabalhadores. Que Garnier desejasse a propriedade comum do solo urbano era um pressuposto natural para uma construção racional de uma cidade, mas não implicava defender a propriedade coletiva da terra em geral. Desejar a preponderância do público como responsável pelo aprovisionamento dos principais gêneros. bem como a administração de água. luz e lixo, era uma postura progressista para a sua época, mas sem ser socialista, embora tenha previsto a construção no centro da cidade de instituições de amparo a desprovidos e a desempregados.

Garnier não revela de quem seria a propriedade das fábricas (ou os construtores e os habitantes) da sua cidade. Prevê reformas sociais, mas não uma nova estrutura social. Seu entusiasmo é o mesmo quando busca soluções habitacionais ótimas e mínimas para as famílias obreiras e quando deixa sua imaginação discorrer sobre casas para os bem-sucedidos. É preciso boa vontade para encontrar muitas das idéias de Fourier na proposta de Garnier, atendo-nos à descrição de Fouricr de urna cidade em transição para a forma ideal (como Godin concretizara).


       Tony Garnier, Citè Industrielle, Estação ferroviária.

O engano fourierista quanto a Garnier talvez possa ser atribuído ao romance Travail de Émile Zola, que conta a estória de um engenheiro idealista, que transforma uma decadente cidade mineira numa cidade industrial ideal. O engenheiro é despertado para o problema por um pequeno texto escrito por um não nominado discípulo de Fourier.   O romance descreve urna comunidade feliz com residências ajardinadas para todos, além de incontáveis possibilidades de lazer c educação. Uma comunidade tão perfeita que podia dispensar prisões e igrejas. É possível que esse romance, que hoje nos parece supersentimental, editado em 1901, tenha impressionado Garnier, levando-o a incorporar um programa social no projeto que já tinha em andamento. De qualquer maneira, imprimiu graciosamente uma frase desse romance de Zola na fachada do prédio destinado a abrigar um centro de vivência. Mas nada poderia ter mostrado de forma tão nítida quão frágil era a ligação de Garnier com os socialistas utópicos.

É mais fácil descobrir uma postura regionalista ao invés de uma postura política em Garnier. Na sua — bastante imprecisa — argumentação sobre a relação da sua cidade com as demais cidades e entre esta c o campo; na sua incorporação de uma cidade antiga ao projeto; na sua consideração à especificidade do clima e da topografia; na sua observação quanto a museus de história e de botânica à necessidade de um local de exposições regionais, etc. Garnier deve no mínimo ter lido ou ouvido à respeito do congresso sobre regionalismo que a Sociedade de Geografia organizou em 1894 em Lyon, considerando naturalmente a região de Lyon c suas possibilidades de desenvolvimento como tema. Não se sabe com segurança qual foi a verdadeira mola propulsora do projeto de Garnier. o que o fez prosseguir trabalhando no mesmo após a decepção de 1904. Tampouco quanto a quem ou o que o influenciou. Em contradição a tantos outros grandes arquitetos. manteve silêncio sobre tais circunstâncias, marcadas por urna mistura de acentuada busca de reconhecimento c profunda modéstia. É muito possível que o seu trabalho como arquiteto para uma mostra internacional em Lyon, em 1914, de prestigiosos projetos de cidade o estimulara a tornar pública a sua própria visão a respeito.
Garnier não exerceu praticamente nenhuma influência imediata sobre a geração um pouco mais jovem que ele.


       Tony Garnier, Citè Industrielle, porto marítico.

Durante os primeiros dez anos após a publicação de seu trabalho, foi considerado por demais radical, engenherático c -não artístico. Durante os dez anos seguintes, foi considerado corno não suficientemente radical e como que flertando com a Antiguidade. Sabe-se que Le Corbusier, aos vinte anos de idade, o visitou em Lyon, em 1907. Le Corbusier foi, também, o primeiro arquiteto de renome que elogiou Garnier, após a publicação do trabalho em 1917, por sua contribuição à nova objetividade da arquitetura e do urbanismo (Esprit Nouveau. 1921). Talvez seja com Le Corbusier como intermediário que Garnier tenha exercido a maior influência sobre o desenvolvimento. Mesmo depois de o funcionalismo haver penetrado seriamente no mundo ocidental, causava surpresa cada vez que surgiam exemplos da anterior e consequente obra-mestre. Não surpreende, portanto, que em 1932 tenha sido objeto de urna nova edição.

 Bispebjaerg Hospital, projetado por Martin Nyrop e construido entre 1908 e 1913, com 700 leitos ampliáveis para 1600. Sua forma é pavilionar, comportando dois centros cirúrgicos, dois centros clínicos e vários departamentos especializados