terça-feira, 29 de janeiro de 2013

ARQUITETURA, UMA DEFINIÇÃO. – Parte II

Claude Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris). Militante comunista franco-suiço, arquiteto e teórico da arquitetura.

Tradução: Frank Svensson


XVII -- Nos marcos da sociedade sem ciasses

Se pode haver semelhança, e mesmo identidade, entre as técnicas e as formas das arquiteturas do mundo capitalista e do mundo socialista, os objetivos de uma e de outra são diametralmente opostos. Esse antagonismo aparece sobretudo nas definições. Os autores dos países socialistas que procuram explicar a arquitetura através de suas relações mútuas com a sociedade consideram essas relações como não-reversíveis. Realmente, o efeito da sociedade sobre a arquitetura não é do mesmo sinal do efeito da arquitetura sobre a sociedade. À maneira de todos os produtos humanos, a arquitetura é meio para um fim social. Está a serviço da sociedade. Destarte, a pergunta o que é a arquitetura ? decompõe-se em duas indagações : em que a arquitetura é determinada socialmente? e que efeito ela exerce e pode exercer nos homens e na sociedade? Colocadas numa situação concreta estas duas interrogações conduzem a uma terceira: que funções e que características tem e deve ter a arquitetura no socialismo ?

Construir o âmbito da sociedade sem classes, agir de modo que esse âmbito seja propício á transformação socialista da vida em sua integralidade -- tal é uma das maiores tarefas da URSS e das democracias populares. Para consegui-lo, esses países contam com trunfos decisivos : a propriedade coletiva do solo e dos principais meios de produção e monetários, o exercício do poder político pelos trabalhadores e a planificação a longo prazo da economia em beneficio de todo o povo. A infraestrutura do território, a proteção do meio ambiente, a exploração das terras, a ampliação e a renovação das cidades, o desenvolvimento da indústria da construção civil, a edificação das habitações e dos equipamentos urbanos, as rendas e os subsídios são, em principio, objeto de uma única e mesma política aplicada em vários níveis e que tem por meta elevar continuamente o grau de satisfação das necessidades da população, eliminando os desequilíbrios regionais, as desigualdades entre a cidade e o campo e a segregação social das aglomerações. Quaisquer que sejam suas particularidades, as sociedades socialistas subtraíram o solo, os imóveis e a cidade à lógica do lucro. Elas resolveram a contradição entre a responsabilidade social da arquitetura e sua dependência da iniciativa privada.


XVIII -- Serviço público. Criação coletiva.

Dentro deste contexto, a arquitetura muda fundamentalmente de conteúdo. Torna-se serviço público, criação coletiva. Quando a sociedade alcança a condição de dono da obra, quando ela destina a si mesma seus próprios produtos, a criação arquitetural já não pode ser uma série de obras esporádicas executadas por profissionais independentes.    A socialização da arquitetura, a magnitude, a urgência, e a complexidade dos problemas a resolver requerem a formação de equipes, de órgãos que congreguem competências científicas e técnicas muito diferentes, trabalhando continuamente em domínios especializados. O coletivo dos cérebros múltiplos tende a substituir o arquiteto-homem de síntese. A criação, que designava a atuação do arquiteto apenas, compreende o conjunto do processo.

Esta evolução questiona mais uma vez a especificidade da função do arquiteto e o compele a superar uma contradição nova e urna antiga. Realizada a revolução, o arquiteto que exerceu seu mister no. regime capitalista demora algum tempo para adaptar-se. Não é sem dificuldades que ele vivencia essa transição de urna sociedade para a outra. Mais tensa e mais incômoda é a contradição entre a tradição bem antiga de individualismo universalista, de espontaneidade artística da profissão, e a necessidade objetiva de concentração, de especialização e de racionalização do trabalho no seio de grandes estabelecimentos onde predomina o anonimato. Essas contradições e a rápida transformação das circunstâncias históricas nas quais elas se manifestam explicam a diversidade e a instabilidade das definições de arquitetura oriundas do mundo socialista.


XIX -- Ferramenta da revolução

Em primeiro lugar, a arquitetura é uma arte, mas uma arte cuja natureza é asperamente controversa. Para os arquitetos tradicionalistas soviéticos formados na Rússia tzarista, a arquitetura é a arte eterna. Para os militantes da Frente Esquerdista da Arte (LEF), para os arquitetos construtivistas, a arte é um bem de que o proletariado está em vias de apropriar-se, de socializar da mesma forma que os meios de produção, de tratar com nem mais nem menos consideração que os outros ramos de atividade. Ela torna-se assim um instrumento da revolução, da transformação da sociedade, dos homens e de suas relações, um utensílio da "reconstrução do modo de vida". A arte já não organiza apenas a consciência e o psiquismo, mas a própria vida, que ela libera e amplia às dimensões do homem total. Vinculada à realidade revolucionária, enriquecendo-se nas fontes da ciência, cuidando da adequação da forma à função, ela não obedece a nenhum dogma. Reinserida no material, a arte contribui para devolver os objetos àqueles que os produzem.


XX -- Herança cultural

No decorrer dos anos 30, os "realistas" triunfam em todos os campos. Politicamente, a mudança de vida, cujo nível a despeito de tudo se elevou, é deixada para mais tarde. Ideologicamente, presume-se que os valores antigos constituíram uma necessidade crescente das massas, que não compreenderiam nem acompanhariam mais as vanguardas. A assimilação da herança cultural é transformada em prioridade das prioridades. A arquitetura torna-se a arte dos mestres nesta matéria. Permanece como a arte de construir e de adaptar "cada edificação aos imperativos técnicos, culturais ou utilitários que lhe são próprios". Mas o que importa é a união íntima da expressão ideológica com a verdade da 'expressão artística. Esta proposição não é tão vazia quanto parece. Significa que os arquitetos devem, nestas condições, tornar expressivo um projeto social que foi decretado sem a sua participação.


XXI -- Meio material

Nos anos 50, quando o socialismo não é mais construido em um país somente e a industrialização da construção civil está deslanchando, a arquitetura continua sendo a arte de edificar. Contudo, se bem que ela não se identifique com a construção, não pode ser considerada exclusivamente como uma das disciplinas da arte. Suas obras são ao mesmo tempo do domínio da arte e da cultura material. Dez anos depois a arte de construir desaparece das definições: A arquitetura é o meio material criado pelo trabalho humano no qual acontecem a vida e a atividade do homem . . . A arquitetura é uma forma da cultura material e, destarte, está estreitamente ligada à atividade produtiva da sociedade; ao mesmo tempo, é também uma categoria da arte. (Elementos de estética marxista-leninista, 1962, pp. 540-541). O aparecimento do conceito de meio indica urna mudança de escala do objeto da arquitetura, a domesticação de espaços interiores cada vez mais compactos.

A reviravolta expressa por esta definição desemboca num debate que prossegue até hoje. Alguns pensam que a arquitetura, como o desenho industrial, é urna arte aplicada. Outros, contrários a esta tese, acrescentam inclusive que, se a arquitetura é meio material, não pode ser também arte, o que não exclui a influência da arte na arquitetura. Para Bruno Flierl, que está envolvido na polêmica desde que nela se empenhou, a arquitetura é o meio ambiente do homem, seu espaço construído, determinado pela história e a sociedade, modelado esteticamente e modelável pela arte, no qual o homem realiza sua vida e suas atividades. Ela é executada tecnicamente na qualidade de produto material, necessário e utilizado, do trabalho criativo. Serve de meio sociocultural orientado para a comunicação social e manifesta-se como objeto concretamente formado da percepção sensorial (Bruno Flierl, 1967, Academia Alemã de Arquitetura, 1967, pp. 44-45)
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XXII -- Idioma vindo de alhures

O empenho ds homens em fazer com que a arquitetura fale não nos ajuda a aclarar seus discursos a este respeito. O que se passa na realidade? A arquitetura é um dos constituintes do ferramental criado pelo homem para apropriar-se da natureza. Esses utensílios que o cercam e o servem só existem por e para ele. Produtos do pensamento e das mãos homem, continuam sendo, contudo, objetos da natureza, fragmentos de matéria, cujas leis são inalteráveis. Uma vez criado, e embora devendo sua existência e seu poder à atividade criadora, o utensílio inicia urna vida autônoma, num sentido fictício e num sentido real.

A atividade consistiu em separar o objeto utilizável da massa indefinida do universo, em dar-lhe urna realidade prática distinta da dos outros objetos. Tudo o que restabeleça as relações do objeto com seu contexto material o reintegra na indiferenciação do todo, aniquila-o corno produto humano eficaz. Por exemplo, a oxidação e a inadequação do dimensionamento da viga metálica acarretarão sua ruína. Isolado da natureza, tendo recebido urna forma própria e um nome, entrando em relação com seus congêneres, o objeto põe-se a falar ao homem como professor num idioma que parece vindo de outro lugar
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Assim, a atividade humana produtora de objetos torna-se criadora de ilusões. Sua relação com os objetos desenvolve-se contraditoriamente. A atividade concretiza-se em e para os objetos e perde-se simultaneamente. Os objetos supõem-na, encarnam-na, contêm-na, mas dissimulam-na. O que o homem faz :a arranca também de si mesmo. Fetichismo e alienação acompanham a realização das coisas humanas. Não admitir isso é como tomar gato por lebre e querer que os outros também o tomem.


XXIII -- Comédia dos senhores

Como os foguetes, a alienação funciona pela queima de vários estágios propulsores. Com a divisão do trabalho material e intelectual, o espírito pode libertar-se da realidade e construir abstrações, desenvolver teorias. As representações elaboradas substituem o conhecimento imediato, usado e abusado. Esse progresso não impede a consciência de imaginar-se que é outra coisa distinta da consciência da prática existente. Ao contrário, impele ao crime, possibilita as grandes fantasias ideológicas que partem de uma realidade, refletida em seguida por meio das representações existentes, selecionadas e admitidas pelos grupos sociais dominantes, mas, que, apesar disso, se arvoram em totalidade.

Esses produtos espirituais não têm em si mesmos nenhum poder. Eles vêm a ser mutilantes na medida em que se introduzem na linguagem, produzem desvios de pensamento e se traduzem em formas, principalmente arquitetônicas. Quando são captados e intencionalmente utilizados pelo poder econômico e político, tornam-se francamente opressivos. Os senhores são obrigados a manter os subordinados em subordinação. Precisam vigiá-los, intimidá-los, incitá-los a trabalhar, ao mesmo tempo em que reforçam o seu prestigio de senhores. Violências e comedias são necessárias para a manutenção da ordem.

Daí a profusão de imagens e palavras destinadas à auto-exaltação da classe dirigente, à sua glorificação pelas classes dominadas, à desconsideração e à autodepreciarão dos oprimidos. A arquitetura e suas teorias mostram gritantemente a que grau de refinamento podem ser levadas as práticas mistificadoras. Agir como se elas não existissem e perorar imperturbavelmente sobre a carga semântica e o código simbólico dos monumentos, das casinholas dos subúrbios e dos traçados urbanos e considerar as pessoas atrasadas e perpetuar seu costume ao fetichismo.

É precisamente à relação do homem com os fetiches que os marxistas chamam de alienação. Ela manifesta-se como arrancamento de si e perda de si mesmo; a potência do homem e substituída por uma potência estranha que o subjuga e que ele não pode dominar. Drama que só terá fim com a reconquista pelos homens da sua própria potência, com a supressão dos superfetiches, sejam eles a mercadoria, o dinheiro, o capital ou o Estado.


XXIV -- Materialização da potência criadora do homem

A emergência e a expressão do poder criador do homem muitas vezes são expostos pelos marxistas como elementos de compreensão do fenômeno estético e da arte em geral. Multiplicando os meios de satisfazer suas necessidades, o homem cria necessidades novas. Por exemplo, a questão não é mais aquecer-se e cozer os alimentos, mas não sofrer o inconveniente da fumaça que invade o ambiente. A urgência imediata não sendo mais uma obsessão de todos os instantes, estabelece-se um distanciamento em relação à necessidade. O homem pode então elaborar projetos, contemplar a obra acabada, regozijar-se não apenas com a sua utilidade, mas também com o testemunho que ela comunica do ato criador. Aqui nasceria o sentimento estético e a possibilidade de obras cuja função primordial seria refletir para o homem a imagem da sua potência criadora. Esta hipótese suscita numerosas indagações muito embaraçosas que tendem a mostrar que ela, sozinha, não é suficiente para urna abordagem da totalidade da realidade. Em todo caso, a arquitetura, que nunca é objeto de puro consumo cultural, escapa-lhe em boa medida.

O pensamento de William Morris e dos construtivistas russos, sem dúvida porque estava firmemente embasado na prática, não deparava com este limite. Dentro da perspectiva aberta por esses criadores comprometidos com a luta revolucionária, a arte e a arquitetura desfetichizam-se a tal ponto que o problema do seu relacionamento não aparece mais. O prazer da potência humana efetiva-se no trabalho e no uso concreto dos produtos do trabalho. Estende-se à totalidade da produção com o desaparecimento da exploração do homem pelo homem, quer dizer, da maldição que pesa sobre o trabalho, o intercâmbio comercial e o consumo. Assim sendo, tudo aquilo que é fabricado pelo homem volta a ser obra de arte, expressão do prazer fruído do trabalho livre, materialização da força criadora humana apropriada. E a arte estando no todo, seu nome desaparece da linguagem.


XXV -- Arma dos sem-teto e dos mal-alojados

Raciocinar sobre o conceito de arquitetura pode parecer despropositado quando, neste final de século XX, existem na Terra cem  milhões de homens e mulheres totalmente sem abrigo e mais de um bilhão que dormem em tugúrios feitos de papelão, de latas amassadas e de taipa, sem falar do número incalculável de famílias que, a peso de ouro, ocupam casas superpovoadas, as multidões que diariamente suportam cidades de pesadelo. Essas massas lutam de várias maneiras para reapropriár-se do mundo que lhes foi confiscado pelos abastados pugnam por obter os meios de satisfazer suas necessidades, entre elas a sua necessidade de arquitetura. Entre esses meios, o conhecimento do que é a arquitetura não é desprezível. Já é tempo de vulgarizar realmente esse conhecimento. Porém isto não basta. É preciso expungir a arquitetura de todos os seus falsos mistérios, desembaraçá-la de sua tendência para a mitomania. Tal é a condição para que ela possa servir de instrumento aos que mais necessidade têm dela


B i b l i o g r a f i a :

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ARQUITETURA, UMA DEFINIÇÃO. – Parte I


Claude Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris). Militante comunista franco-suiço, arquiteto e teórico da arquitetura.

Tradução: Frank Svensson


As definições sucintas de arquitetura têm apenas uma utilidade de conveniência. A prazo mais ou menos curto elas tornam-se herméticas. Para explicar realmente o que significa arquitetura, o que a liga às outras coisas e a distingue, corno é feita, se manifesta e se desenvolve, é mister infringir a regra segundo a qual a concisão contribuiria para a clareza da definição. A arquitetura pode ser definida como atividade, como produto dessa atividade, como resultante de fatores, corno um todo composto de partes e como parte de um ou mais todos.


I -- Atividade e produto.

 A arquitetura é urna atividade produtora, uma das atividades do homem em que ele se apropria da natureza e a transforma pelo trabalho. Deste modo, ela subordina-se às condições da produção social dos bens materiais em geral. Emprega e depende das técnicas, que evoluem com o desenvolvimento dos meios e das relações de produção. Mediante um encadeamento de operações, no qual o projeto é apenas urna fase, a arquitetura transforma em realidade concreta as intenções referentes à edificação e à manutenção do habitat tomado no sentido lato. Na qualidade de produto e como instrumento da vida material, a arquitetura é um intermediário entre o homem e a natureza. Reflete ao mesmo tempo as condições impostas pela matéria que é preciso trabalhar e as exigências vitais do homem, ou seja, as propriedades do objeto que deve servir a ele e que é necessário executar.

A arquitetura é construída, fabricada. É feita de matéria trabalhada, disposta, estruturada, para resistir às forças naturais da destruição. Insere-se no meio físico: local, natureza do subsolo, topografia, acesso e clima. É realizada por um custo e dentro de um prazo definidos. E essas imposições da arquitetura conjugam-se à necessidade de um determinado funcionamento. A arquitetura satisfaz necessidades, serve, tem uma destinação, funções. Torna a natureza habitável com o objetivo de assegurar a subsistência da sociedade. É o receptáculo da organização espacial da vida, o âmbito propicio ou desfavorável à realização da maior parte das atividades. É condição, meio, materialização, fôrma e reflexo das relações sociais.

O conteúdo de classe do produto arquitetural é expresso essencialmente nas funções que a sociedade lhe destina e no uso real que se faz delas. As funções correspondem a necessidades específicas, que são satisfeitas pela distribuição do espaço e pelas propriedades físicas e morfológicas dos componentes da obra. Disso resulta que a qualidade do produto arquitetônico depende da concordância entre a função -- seu para quem, seu para quê, sua razão de ser -- a estrutura -- aquilo pelo qual é concretizado materialmente -- e a forma -- o como se revela, sua maneira de ser.


II -- Objeto de percepção.

A arquitetura manifesta-se, cria um meio, exerce uma influência sobre o homem, dirige-se a seus sentidos e a seu espírito, participa na formação de sua consciência. Integra-se à esfera emocional e intelectual da sociedade A arquitetura é objeto de percepção, suporte de mensagens, portadora de significado, meio de comunicação social, do conhecimento e do reconhecimento, testemunho cultural. Os homens aproveitam a função comunicativa da arquitetura para atuar sobre seus semelhantes, para canalizar ideias (as ideias dominantes sendo as da classe dominante), para afirmar o que são e o que gostariam de ser, para mascarar a verdadeira natureza dos objetos. Esse desvio é possível graças à relativa autonomia da forma arquitetônica. Com efeito, a linguagem da arquitetura tem tendência a conservar os elementos formais muito depois do período histórico em que surgiram e se justificavam tecnicamente. Se certas formas, associadas no passado a certos conteúdos, permanecem e estão carregadas de um significado simbólico, isto não se dá apenas em virtude do costume, mas também do poder que conferem aos homens.


III -- Resultante de fatores

A arquitetura pode ser compreendida como resultante de fatores: o programa, isto é, o enunciado das exigências a que o produto deve satisfazer; a economia do país, sua política de construção e a situação financeira de quem encomenda a obra; o estado do patrimônio imobiliário, as necessidades e o mercado; a organização da indústria da construção civil e dos seus profissionais; o instrumental, os materiais e processos disponíveis; a capacidade e a cultura dos que atuam na construção; o terreno, o meio e o clima; a legislação e a regulamentação; as relações de classes, os modos de vida, as aspirações, os costumes, as crenças, as concepções de Inundo e os ideais estéticos.


IV – Parte de um todo

A praxe de explicar a arquitetura como um todo constituído de três partes remonta a Vitrúvio. Autor do único tratado de arquitetura de sua época que foi preservado, para ele “três coisas devem ser encontradas em todas as edificações, a saber : a solidez firmitas, a comodidade utilitas e a beleza ventistas, que a arquitetura leva em conta para o ordenamento e a disposição de todas as partes componentes da edificação e que ela regula mediante uma justa proporção, tendo em conta a ornamentação e a economia". À tríade firmitas-utilitas-venustas de Vitrúvio correspondem firmitas-commoditas-voluptas de Alberti, construção-distribuição-decoração e verdadeiro-útil-belo dos teóricos clássicos, bem como estrutura-função-forma dos modernos.

Pode-se duvidar da validade epistemológica destas variantes, como fez J. N. Durand pela primeira vez no início do século XIX. Bem analisadas, elas definem menos o fato arquitetura que as qualidades que esta deveria ter. Muitas definições de arquitetura enveredam pela via clássica mais curta, que é a do gênero e da diferença específica, o gênero designando o todo do qual a coisa a definir constitui parte; e a diferença especifica distinguindo a coisa de todas as demais do mesmo gênero.

Isto dá, por exemplo: arquitetura igual a meio ambiente construído. Uma boa definição devendo corresponder a tudo o que é definido, seria preciso que tudo o que e denominado arquitetura fosse meio ambiente construído, e que todos os meios ambientes construídos fossem chamados, sem exceção, arquitetura. Ora, tal não é o caso. A arquitetura como atividade escapa a esta definição. Por outro lado, parece arriscado afirmar uma igualdade lógica entre a arquitetura e uni vinhedo em terraços, ou um avião, que apesar de tudo não deixam de ser meios ambientes construídos.


V -- Arte de constmir

Para a maioria das pessoas, a arquitetura e a obra de um artista-técnico que alia a estética ao indispensável. Por suas práticas e seus escritos, os arquitetos têm contribuído grandemente para a difusão dessa imagem. Foram eles que definiram a arquitetura como a arte de construir, fórmula que ainda hoje é objeto de vivas controvérsias, por causa do gênero em que se classifica a arquitetura.

A palavra arte pode ser compreendida em sentidos muito diferentes. Ela designa: 1) a maneira judiciosa de fazer; 2) a maneira de obter algum resultado por meio da habilidade, da destreza e do talento; 3) o conjunto das práticas, conhecimentos e regras de atuação num domínio particular; 4) a expressão, pelas obras, de um ideal estético;   5) as atividades e as criações que tendem a essa expressão; 6) os domínios onde a beleza é realizada. Nos três primeiros sentidos, a arquitetura é a tecnologia, o saber-fazer da construção. Mas pode redundar na exclusividade, porque as aptidões dos construtores não estão distribuídas igualmente. A arquitetura torna-se então o ato de construir bem, a boa construção.

Pelas outras três acepções da palavra arte, a arquitetura é a construção esteticamente válida, que satisfaz a sensibilidade estética, conforme a ideia do belo. É a construção bela. Estas interpretações da definição são ainda mais seletivas que as anteriores. Em última análise, a arquitetura resulta na arte construída, na beleza realizada, ou seja, no mundo independente das ideias, anterior à realidade material e à consciência humana. Se a arquitetura é a tecnologia que permite construir, então arquitetura e construção constituem uma só e mesma coisa. Se ela é a boa construção -- qualidade relativamente fácil de aquilatar -- é automaticamente bela porque boa, ou então se torna bela em certas condições, por uma intervenção e além de um limiar que ainda não foi definido. Essas incertezas e suas múltiplas reincidências na prática fazem ressurgir constantemente a interrogação: a arquitetura é ou não urna arte? Colocada em termos intemporais e absolutos, esta pergunta requer também urna resposta absoluta. Ela implica uma opção impossível de fazer racionalmente entre um sim e um não que podem ser defendidos, tanto um como o outro, com excelentes argumentos. Só a história do desenvolvimento interativo dos fatos e do conceito de arquitetura permite sair do dilema.


VI – Tecnologia

Primitivamente, o utilizador do abrigo é o seu próprio construtor. Ele ainda não o projeta numa fase preliminar distinta da execução. Posteriormente, construir se torna uma profissão. Construtores edificam para usuários que, por sua vez, especializaram-se em outras atividades.  Nas grandes obras que exigem conhecimentos especiais, as tarefas de concepção e de administração separam-se das tarefas de execução. De qualquer maneira os mestres-de-obras dos santuários e fortalezas continuam sendo operários, provavelmente mais versados que seus colegas, mas, como eles, imersos num concreto impregnado do imaginário. Nas suas mentes, obra de pedra e Jerusalém celeste são a mesma coisa. Sua arte, uma das artes mecânicas, é tecnologia. Compõe-se de habilidade manual, conhecimentos intuitivos, empíricos, subordinados aos valores da religião e do corporativismo. Não é objeto de teoria, mas apenas, quando muito, de receitas. Não se aplica, ou se aplica muito pouco, à criação original.


VII -- Maneira de construir bem

Com o surgimento na Renascença de necessidades e clientes novos, a arte de construir muda de conteúdo. É preciso renovar as cidades, que tomam novo impulso, criar o ambiente dos grandes senhores, dos altos dignitários eclesiásticos e dos mercadores bem-sucedidos, racionalizar o trabalho em um número crescente de grandes obras, para onde aflui uma mão-de-obra camponesa pouco qualificada, exibir o ideal prometeico da elite, a força do Estado e a universalidade da Igreja Católica. Os novos clientes, ávidos de distinção, não se interessam absolutamente pelos pedreiros e carpinteiros que, mesmo sendo mais habilidosos que os outros, repetem modelos impregnados de tradições populares. Esses clientes precisam de interlocutores que compreendam as suas exigências e sejam capazes de satisfazê-las. Como estes últimos, eles carecem de regras escritas que possam ser difundidas e discutidas.

Assim se constitui unia teoria da arte de construir que permite ao mesmo tempo oferecer a prova da cientificidade da arquitetura, retirá-la das artes mecânicas, desvalorizadas pela degradação da condição operária, e elevá-la à condição de atividade nobre, e impelir os arquitetos para as altas esferas do espirito e da sociedade. A arte de construir (arte ainda é mais ou menos sinônimo de ciência e de técnica) vem a ser então a maneira de construir bem que consiste em imitar os antigos -- os gregos e os romanos, que supostamente elevaram à perfeição os dispositivos naturais primitivos de construção -- e transformar a edificação num todo homogêneo e completo. Em oposição à maneira má, que é a do poviléu e dos pedreiros que se contentam em justapor os elementos numa ordem que se assemelha a uma desordem, a maneira boa segue uma ideia ordenadora única e baseia-se no princípio da unidade.

Deste modo, a boa maneira de construir confere categoria à arquitetura e, consequentemente, às pessoas a quem se destina. É certo que as peças arquitetônicas devem ser sólidas e cômodas, mas antes de tudo devem representar e servir à representação, dentro do respeito estrito das usanças. Com a maneira de construir bem, os grandes deste mundo têm um belo meio de exibir suas vidas e de deixar empos de si marcas de sua grandeza e de seu espírito e, da mesma forma, os arquitetos podem notabilizar-se pela beleza e excelência de suas obras" (Paládio, vol. 111-5).2


VIII -- Bela construção

É suficiente construir bem para que a arquitetura seja bela? Não, se por construir se entende solidez e comodidade. E sim, se construir bem for a aplicação da totalidade das regras. No discurso dos arquitetos da Renascença e dos três séculos seguintes, a beleza aparece como recompensa da fidelidade aos princípios de imitação, unidade, proporção, simetria, hierarquia, de conveniência etc. Não é abordada frontalmente porque é dificil discutir uma ideia apresentada como uma reminiscência do esplendor de Deus.

A beleza está na Criação, na natureza, na herança dos antigos, que convém imitar. Está em tudo o que é conforme as regras que o homem soube inferir da ordem pretendida pelo Criador. A menor infração aos princípios de subordinação das partes umas às outras, por exemplo, é uma fealdade.

Por isso, a obra de pedreiro, as casas da plebe, e as construções góticas, com suas ensambladuras e excrescências proteiformes, são abominações. Sentença que é um meio de legitimação, porque os arquitetos, pouco numerosos e responsáveis por unia parte ínfima mas vantajosa da construção, defrontam com uma multidão de mestres pedreiros que podem muito bem se arranjar sem eles. Vemos aqui a origem da dúvida possível entre a arquitetura como um conjunto de obras raras dos grandes arquitetos e arquitetura como meio ambiente construído sem distinção de objetos e de criadores. Por conseguinte, a partir do Renascimento e durante muito tempo, a arte de construir identifica-se com a bela construção. A arte dos arquitetos, que não trabalham mais com as mãos na obra, consiste em pôr tanta beleza na alvenaria que mais não se possa desejar (Alberti, vol. VII).3

Alguns podem perguntar-se se, na criação dessa beleza, os arquitetos não procuram também fugir a na verdade particularmente amarga: o preço de sua autonomia profissional é sua submissão à fortuna e à benquerença dos nobres.


IX -- Construção útil

No século XVIII, quando se requer uma arquitetura mais cômoda, mais íntima e mais econômica, ninguém duvida de que o fim do sistema arquitetura] originado no Renascimento esteja começando.
A arquitetura torna-se o teatro de urna série de conflitos: a variedade e a variabilidade crescentes das necessidades contra o peso dos modelos imutáveis; o preço do trabalho e a inversão de capital produtivo contra o gosto e o custo do ornamento; o princípio da igualdade dos homens e dos cidadãos contra a arquitetura corno privilégio de classe; a concepção edificante e libertadora da arte contra a arquitetura estabilizadora e justificativa da ordem estabelecida; a inteligência crítica e a confirmação da perfectibilidade das sociedades contra a tradição e a autoridade dos antigos.

Pouco depois da Revolução Francesa aventou-se a concepção de que a conveniência e a economia eram os únicos princípios que podiam orientar o estudo e o exercício da arquitetura; de que, quando é tratada consoante esses princípios, é impossível que a arquitetura não agrade; de que desde que uma edificação contenha tudo o que é preciso e nada além do que deve conter, e desde que tudo o que é necessário se encontre disposto de maneira mais econômica, isto é, da maneira mais simples, essa edificação tem o gênero e o grau de beleza que lhe convém (Durand, vol. II 6). 4

Dito de outro modo, a arte de edificar é a construção útil, forçosamente bela porque útil. Não é que a arquitetura antiga tenha sido inútil, mas útil por significar uma transposição do ideal para o material nas funções preponderantes. A beleza imanente nos princípios eternos, reproduzida por sua aplicação, torna-se resultante de fatores particularizados, atualizados.

Essa posição se depreendepreende do novo escopo atribuído à arquitetura : a utilidade pública e particular, a felicidade e a conservação dos indivíduos e da sociedade (Durand, 1817, 118).  Porque, com efeito, como poderia a arquitetura escapar à abolição dos privilégios ?  Ela deve a partir de agora conhecer todas as necessidades, ser concebida e executada no interesse da sociedade toda. Necessidades às quais a burguesia, sedenta de lucros e ciosa do poder que conquistou, é incapaz de responder.


X -- Embelezamento da rentabilidade

O meio ambiente é construído em função da rentabilidade do capital, e quando a classe dominante, temendo insurreições, se decide a fazer alguma coisa em beneficio dos trabalhadores, é para jungi-los ainda mais firmemente ao seu sistema: "Quem é que não percebe como a esperança de se tornar proprietário faz o homem mais trabalhador, mais econômico e mais metódico, e com que intensidade a sua vida se torna mais ativa e mais interessante? . . . Queremos ao mesmo tempo fazer os indivíduos felizes e transformá-los em verdadeiros conservadores? queremos combater simultaneamente a miséria e os erros socialistas? queremos reforçar as garantias de ordem, de moralidade, de moderação política e social? Criemos cidades operárias!" (Jules Siegfried, deputado-prefeito do Havre, 1880).

O urbanismo nascente muito rapidamente se divide em práticas antagônicas. O social é assunto dos altos funcionários, dos juristas e dos políticos eleitos; das administrações municipais. O concreto está nas mãos dos especuladores, empresários e engenheiros. Aos arquitetos resta o embelezamento. Urna regulamentação cada vez mais meticulosa tenta evitar o pior. Simultaneamente, a Revolução Industrial aniquila as tradições locais e milionárias da construção. O ferro, o concreto armado, a água, a eletricidade e as máquinas irrompem na casa. Subitamente o ferramenta', a experiência e o saber dos antigos do oficio não estão mais à altura dos problemas inteiramente novos, de uma amplitude até então desconhecida, que devem ser resolvidos em prazos muito curtos.


XI -- Poesia da construção

Assustados com o desastre de seu universo, com a ruína de suas prerrogativas e com a competência dos engenheiros, os arquitetos reagem, adotando uma atitude de refugio na tradição e nos setores da demanda em que ela se pode perpetuar. Não obstante, dentro dos limites do liberalismo e face à necessidade de uma flexibilidade do repertório formal para adaptar-se à variedade dos programas, sua relação com o passado torna-se eclética. Agora a Antiguidade greco-romana é apenas uma referência entre outras. Por outro lado, a luta pela obtenção dos contratos e o romantismo e o individualismo burguês precipitam os arquitetos na busca da originalidade, na expressão de uma visão pessoal ou de uma mensagem particular.

A ideia, da qual a edificação é o reflexo, aparece como surperdeterminante. Opõe-se à realidade material e às exigências da  prática, que tendem a pervertê-la. A arquitetura é comparada a um ato de pura criatividade, próprio do indivíduo e independente das injunções sociais, econômicas e técnicas. Seu objetivo é agradar, emocionar, encantar, despertar o sentimento quase religioso do belo. Suas leis não têm outra medida além do gosto. A própria fórmula arte de construir é questionada porque faz a construção excessivamente bela. Seria preferível Arte (com a maiúsculo) aplicada a construir ou Poesia da construção Se construir bem é atividade de gente honesta, é para além dessa honestidade que se estende o domínio da arte, ou seja, da arquitetura.

A boa construção pode tornar-se uma arte a partir do momento em que, independentemente de qualquer consideração, demonstre um desejo desinteressado de enobrecer o quadro da vida. O arquiteto deve estar disposto a sacrificar a isso seu esforço e seu tempo, e até mesmo, às vezes, uma parte da utilidade da obra. É no sacrifício que a arquitetura começa. Acusar-se-á o arquiteto de não se mostrar muito racional? Em arte, não é essencial sê-lo. O talento pouco consegue sem uma pitada de insensatez, e o gênio sem um grão de loucura. A beleza, que é feminina, exige de seus adoradores ser amada rigorosamente por si mesma, e suas razões, como as do coração, são razões que a própria Razão desconhece (Gromort, 1946, 21). São muito raros os arquitetos do século XIX e inicio do século XX que não endossam estas concepções.


XII -- Germe do futuro

A situação muda tão logo termina a I Guerra Mundial. Sobre as ruínas das últimas grandes monarquias e sob o influxo das revoluções, particularmente a russa e a alemã, surge uma esperança imensa em um mundo novo, em uma vida nova, o que se concretiza na Nova Arquitetura.  Os arquitetos dessa corrente minoritária, mas influente, prestam ouvidos aos clamores dos milhões de mal alojados. Tomam como ponto de partida as necessidades das camadas populares, para as quais nunca havia existido outra arquitetura senão a imaginada e admitida pela burguesia. Formulam os problemas em termos de economia, de sociologia e de tecnologia avançada; analisam dados quantitativos, raciocinam com base em fatos; questionam, sistematicamente, a sua herança; buscam processos e materiais que se prestem à produção popular a baixo custo.

Para eles, o objetivo da arquitetura é proporcionar ao homem, considerado sob seu aspecto concreto, os instrumentos de sua inserção no meio físico e social, considerado igualmente na sua realidade concreta. A sua arquitetura não é apenas uma resposta às necessidades momentâneas, mas urna componente de um projeto global de sociedade. Ela direciona-se a introduzir no presente os germes do futuro, procura contribuir para a modificação do sistema de vida e das práticas sociais, para a libertação da escravidão doméstica e das convenções burguesas, e para o estabelecimento de comportamentos mais livres e mais responsáveis, e de relações mais abertas e mais fraternas.


XIII -- Função e economia

Nos arquitetos progressistas mais radicais, essa opção está associada a uma revogação da arte: Todas as coisas deste mundo são resultantes da formula: função x economia. Tais coisas não são obras de arte: toda arte é composição e, consequentemente, antifuncional. Toda vida é função e, por conseguinte, não artística. A ideia da composição de um porto? Ridícula.  Porém corno se concebe um projeto urbanístico? ou a planta de urna vivenda ? Composição ou função ? Arte ou vida ? Construir é um processo biológico. Construir é um processo estético. (Meyer, 1928, 47)
Essa negação da arte, da estética e mesmo da arquitetura (em alemão, o substantivo Bau, em palavras compostas, pode ser traduzido, ora corno construção, ora corno arquitetura), é mais matizada do que corno geralmente se apresenta. É ruptura com a estética do primado e da intemporalidade da forma, rejeição do simulacro e do vazio dos sucedâneos artísticos na prática arquitetônica capitalista ; é negação de urna arte que não ousa tirar o véu da sua destinação e foge das realidades acusadoras do presente.
Porém se a arte sentimental da imitação está batendo em retirada", se a arte como produção de extravagâncias, como objeto de coleção e privilégio de um indivíduo deve morrer, se "a arquitetura como prosseguimento da tradição e como criação subjetiva deixa de existir, urna nova arte, uma nova arte de construir, já se manifesta. Ela é criação coletiva, invenção é realidade manejadas. A arte torna-se realidade. (Meyer, 1926, 32)


XIV -- Arte ou não, ou sim e não

Daí por diante o debate sobre a relação arte/arquitetura se complica e se envenena. No mundo capitalista, a ofensiva iniciada através do fascismo contra o movimento de emancipação das massas, que alimentava a Nova Arquitetura, é continuada sob outras formas após a II Guerra Mundial. Os monopólios, ante a expansão do socialismo pelo planeta e o desmoronamento dos impérios coloniais, mudam de estratégia para integrar duradouramente as várias camadas sociais ao sistema socioeconômico vigente.

Induzem ao consumo individual, apresentado como a via para o bem-estar de todos. Em consequência, a organização da vida já não aparece corno um objetivo da ação coletiva das massas. O arquiteto vê desaparecer de seu horizonte as possibilidades de aliança com os destinatários do seu trabalho, no próprio momento em que uma gigantesca reestruturação da construção civil restringe ainda mais sua margem de manobra na produção. Com efeito, os procedimentos decorrentes da industrialização, do domínio do capital financeiro sobre o imobiliário e do estreitamento do controle do Estado, relegam o arquiteto a papéis amiúde subalternos, quando não o excluem de todo.

O arquiteto -- bitolado entre sua responsabilidade para com os usuários e suas obrigações para com os detentores e administradores do capital, vacilando entre exercer a arquitetura como profissional liberal ou como assalariado, afanando-se entre os trâmites, as reuniões, a correspondência, os processos, a prancheta de desenho e o canteiro de obras, sobrecarregado por uma congérie de informações contraditórias incessantemente ultrapassadas e renovadas, oscilando entre a revolta e a submissão, cindido entre a expressão do seu eu e a necessidade de levar em conta os outros, e devendo, apesar de tudo, buscar um porto seguro --, conforme o caso, responde que sim, que não, ou que sim e não à pergunta: a arquitetura é uma arte ?


XV -- Signos e símbolos

Atualmente a ideologia dominante não admite mais a menor dúvida: a arquitetura é uma arte. Uma arte que tem grande dificuldade em ocultar que se dedica à salvação da sociedade capitalista em crise. No grande jogo político de transferência dos capitais para as especulações financeiras, de compressão do poder de compra e consumo dos trabalhadores, de confisco das conquistas sociais, especialmente na habitação, a arquitetura de pronto surgiu como um peão não desprezível. Ela é importante para concluir a comercialização da cidade, para o apaziguamento das lutas urbanas e das ansiedades geradas pela revolução conservadora, para o estabelecimento de um compromisso entre a classe dirigente e as camadas sociais médias em ascensão.  Fato novo: a arquitetura e suas ideologias conformes às linhas diretrizes fazem parte do acordo mediador.

Dos arquitetos à espreita de licitações, raríssimos são os incumbidos de contentar as pessoas que, atemorizadas pelo desemprego e a ferocidade da competição, pela desestabilização de suas vidas e pelas ebulições do mundo, voltam-se para si mesmas e retornam os valores do passado. Aos vencedores do neoliberalismo, eles devem fornecer um meio que os engrandeça. Ao meio ambiente da sociedade, tornado insensato como ela, devem devolver uma alma. Nunca mais se havia procurado modificar a cidade para modificar a vida. Essa reinvindicação, aventada na agitação do final dos anos sessenta, foi desviada para um consenso sobre a prescrição : mudemos a imagem da cidade para que a ideia que os homens têm de suas vidas mude. Isto se traduz concretamente num trabalho sobre o signo, sobre o símbolo. A arquitetura é apreendida como unta linguagem alimentada pela memória histórica. Seu principio é dizer às pessoas as coisas que se acha que elas compreendem e desejam entender. Na realidade, trata-se de dar à arquitetura um significado diferente daquilo que é, de tornar ainda mais obscuras as relações sociais que a modelam, de impor silêncio a respeito delas.


XVI -- Arte da ilusão de óptica

Dentro desta perspectiva, a arquitetura não pode mais ser definida decentemente como a construção honesta e desinteressada. Ela é a arte do embuste, da mentira cínica. Mas como a confissão da burla anularia a sua eficácia e minaria perigosamente a dignidade da arquitetura, os teóricos burgueses atuais esvaziam ainda mais radicalmente que seus predecessores o conteúdo social, o econômico, o político e o técnico e procuram fundamentar um conhecimento da arquitetura a partir dela mesma, ou de um pensamento sobre o espaço, ou de análises abstratas dos códigos simbólicos.

Abolidos o homem, a matéria, o trabalho e a vida, as únicas coisas que lhes restam como categorias são o vazio, a aparência, a imagem, a inconsciência, o supremo e o sagrado. O manifesto Arquitetura absoluta, de Hans Hollein, foi considerado em 1963 como uma farsa de um provocador isolado. Na realidade esse manifesto era unta premonição da tendência hoje predominante nos países capitalistas avançados: Construir . . . não é pôr um teto para proteger-se; é erigir figuras sagradas, marcar os recintos das atividades humanas . . . A arquitetura não serve para satisfazer as necessidades dos medíocres, não é o âmbito dos destinos obscuros das massas. A  arquitetura é feita para aqueles que se encontram no ápice da cultura e da civilização, na vanguarda do desenvolvimento da sua época. A arquitetura é assunto das elites.

Ela domina o espaço pela massa e pelo vazio, reina sobre o espaço pelo espaço . . A forma de uma edificação não deve denotar seu uso, não é a expressão de uma estnitura e de uma construção, não é um envoltório ou um abrigo. Urna edificação é ela mesma. A arquitetura é gratuita. O que nós construímos encontrará sempre uma utilização. (Hollein, 1962 ; Conrads, 1964, 174-175)


N o t a s:

1) Marcus Vitmvius Pollio, engenheiro e arquiteto romano do século I a.C., autor da Basílica de Fanum. Vitrúvio escreveu o tratado De Arehitectura, dedicado ao imperador Augusto e em que procurou codificar os prineipios da arquitetura helenística. Essa obra, que constituiu a única abordagem teórica da arquitetura antiga existente, foi largamente utilizada e interpretada pelos arquitetos da Renascença.

2) Andrea di Pietro, vulgarmente Palladio, arquiteto italiano (Pádua, 1508 - Vicenza, 1580). Construiu basílicas, um teatro olímpico e mansões. Publicou Quatro Livros de Arquitectura, adotando os princípios de Vitruvio adaptados a concepções mais modernas.

3) Leon-Battista Alberti, humanista e arquiteto italiano (Gênova, 1404 - Roma, 1472). Escreveu o tratado De Re AEdificatoria. Obras de modernização urbana e palácio em Florença, igrejas.

4) Jean Nicolas Louis Durand, arquiteto, arqueólogo e teórico francês. (Paris, 1760 - Thiais, 1834). Escreveu Précis des leçons données l'École l'olyteehnique, em que preconiza a adaptação dos elementos arquitetônicos sua função, uma arquitetura prática, sólida, de formas simples e simétricas, e a sobriedade na decoração.

F o n t e s

VTTRÚVIO. De Architectura libri decem (Dez livros sobre Arquitetura). Berlim, 1964.

 PALLADIO. A., Os quatro livros da Arquitetura. Veneza, 1570.

ALBERT1. L. B., Da arte arquitetônica. Florença, 1485.

DURAND. J. N. L., Compêndio das lições de Arquitetura ministradas na Escola Politécnica Real. Paris, 1817.

GROMORT. G., Ensaio sobre a teoria da Arquitetura. Paris, 1946.

MEYER. H., 1929, Construir/1926, o novo mundo, In: L. Meyer-I3ergier (organizador). "Hannes Meyer -- Construção e Sociedade Dresden, 1980.

HOLLEIN. H., Arquitetura absoluta, In: U. Conrads (org.), Programas e manifestos da Arquitetura do século XX. Berlim-Frankfurt am Main-Viena, 1962