sábado, 29 de dezembro de 2012

O NEOPOSITIVISMO DE LEONARDO BENEVOLO EM FACE DO PROBLEMA DA CONFIGURAÇÃO URBANA –

Frank Svensson . Artigo publicado em Boletim do Instituto de Arquitetura e Urbanismo UnB, nº 50, 1990.

Marxismo e planejamento urbano

Entre teóricos e historiadores não marxistas é frequente encontrarmos a opinião de que o marxismo seja omisso em relação à questão da configuração dos assentamentos urbanos. Em seu livro A origem do urbanismo moderno, Leonardo Benévolo faz uma afirmativa desse tipo. Refere-se aos textos de Engels, nos quais este polemiza com Proudhon e Sax sobre as teorias dos mesmos quanto às cités ouvrières francesas e as building societies inglesas. O engano de Engels consistiria, segundo Benévolo, em não haver proposto programas alternativos para o planejamento urbano e, assim, haver limitado a questão da cidade a uma questão da revolução econômica.

Engels preferiu ver a organização futura das cidades corno uma mera decorrência da revolução econômica que a classe trabalhadora persegue. Ele preferiu, portanto, incluir a questão da habitação na problemática social. Desse modo, é verdade que a critica marxista apresenta algumas teses fundamentais para o planejamento habitacional em andamento. Mas deixa a questão da aplicação dos princípios à área do planejamento em aberto e por muito tempo para frente se distancia do desenvolvimento no setor do planejamento urbano.1

Benévolo é vitima do enfoque idealista que afasta o planejamento urbano do movimento operário c da participação popular. A revolução econômica e social é vista como uma solução futura que não deve ser negada mas que não estaria ligada à atual ação reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana. O conteúdo social da cida-de é visto em seu estado de objeto da planificação urbana sem considerar a sua real transformação para a condição também de sujeito da planificação. Não reconhecendo essa tendência histórica da ação reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana, é natural que despreze, também, o conhecimento relativo aos instrumentos indispensáveis ao desenvolvimento da totalidade urbana. Torna-se difícil ver as organizações e os procedimentos das classes trabalhadoras como os novos meios do desenvolvimento e da configuração dos assentamentos humanos. Uma análise mais atenta de toda a obra teórica de Engels teria dado a Benévolo uma maior clareza da questão.

O conceito de espaço, implícito na observação de Benévolo, é o mesmo que Hegel defende quando analisa a arquitetura como ramo artístico. A sociedade é entendida como algo na massa construída da cidade e não como componente da mesma. A sociedade é vista em suas propriedades econômicas como algo em si, enquanto a cidade é reduzida à condição de continente material da mesma. As pessoas e as formas social-mente organizadas das mesmas não são reconhecidas como portadoras de expressão espacial e temporal.

Fig. 1. Um dos tipos de moradia operária do projeto elaborado por Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para uma fábrica de tecidos em Moulouse, que foi objeto de critica por parte de Frederico Engels em seu livro sobre A questão da habitação.

A cidade é limitada ao conjunto de edificações e vazios, ao qual a população deve adaptar-se. Daí a sensação de vazio na visão marxista da configuração e do desenvolvimento urbano.

Espaço e tempo foram esclarecidos, por Marx e Engels, como expressão dos homens, das coisas c de todos os seres, incluindo as propriedades e as relações objetivas dos mesmos Não aceitando o conteúdo social da cidade como matéria com expressão espacial e temporal, não podemos ver o conhecimento a respeito como ciência e técnica da configuração urbana. Permanecemos na ilusão do humanismo idealista, tendo um objeto social abstrato e de realidade desconhecida como referencia para a configuração dos assentamentos humanos.


A ação recíproca da produção material e da produção espiritual como essência da conformação urbana

Para obter clareza quanto às leis internas, que explicam a ação recíproca entre o conteúdo social, o corpo construído da cidade, o caráter técnico e o artístico da sua totalidade, e necessário considera-los como formas específicas de trabalho, tanto de trabalho concreto como de trabalho abstrato, de produção material e de produção espiritual. As características principais da anatomia da sociedade foram esclarecidas por Marx em sua teoria sobre a infraestrutura e a superestrutura da mesma. A partir do resumo dessa teoria, no prefácio da Contribuição à critica da economia política, podemos formular algumas questões básicas sobre a configuração urbana: Quais são os lugares onde a produção material se desenvolve na cidade? Como é que esses lugares estruturam a espacialidade da cidade? Quais e como são os lugares onde se processa a reprodução da produção material? O que caracteriza os lugares pelos quais circulam os produtos e os produtores? Como se expressam, espacial e temporalmente, os lugares dos aparelhos jurídicos. políticos, religiosos e culturais da superestrutura da Sociedade? Como se relacionam os lugares entre si, refletindo em seu uso princípios de justiça e de desenvolvimento social? Em sua análise da anatomia da sociedade.

Marx aborda, também, a objetividade do tempo social. Menciona os momentos de câmbio, entre urna formação socioeconômica e a seguinte, como indicadores qualitativos do desenvolvimento da sociedade. Cada formação socioeconômica vem dotada de suas leis históricas próprias, as quais orientam o surgimento e o desenvolvimento da mesma. As formações específicas submetem-se a leis mundiais que se unem no processo da História Geral. Manifestações espaciais e temporais das formações socioeconômicas sobrevivem umas nas outras. Da mesma forma encontramos expressões de distintas formações em cidades, regiões e países os mais diferentes.

A relação entre a configuração urbana c a generalização teórica das formações socioeconômicas não é automática e imediata mas existe e é fundamental para o conhecimento da temporalidade dos assentamentos humanos. Como é que poderíamos melhor entender a temporalidade da configuração urbana no Brasil, por exemplo, sem considerar as igrejas, os prédios de administração e os palácios senhoriais surgidos, com urna nova linguagem arquitetônica, em Florença e Roma, durante o séculos XV, na passagem da formação feudal para a capitalista? Como é que conseguiríamos entender, de outra forma, a dissolução da homogênea imagem da cidade feudal, justamente por esses novos tipos de prédios e seus espaços externos?

Foram modelos trazidos por arquitetos como Terzi e Nasoni, da Itália para Portugal, que depois se espalharam por todo o mundo colonial português. Isso ligado ao fato de Portugal ter surgido como uma nova formação socioeconômica de mercadores e nave-gadores, em ruptura com a sociedade feudal e agrária da Espanha. É nisso que encontramos, também, as raízes históricas da cidade colonial portuguesa com uma configuração tão diferente da cidade colonial espanhola. Como poderíamos entender melhor a configuração da cidade colonial holandesa, trazida para o Recife, a não ser em relação ao período de florescimento do capitalismo mercantil dos e nos Países Baixos? Corno poderíamos entender melhor os modelos de edifícios desenvolvidos no ambiente romântico e otimista Revolução Francesa, sob forma de parlamentos, academias de Be-las Artes, bibliotecas, bolsas de valores, teatros, mercados, mansões burguesas e conjuntos de habitação operária? Da Paris de Napoleão Bonaparte esses tipos de edifícios foram espalhados por todo o mundo, inclusive para países tão diferentes como a Rússia e o Brasil, por meio de arquitetos como Montferrand e Montigny.

Como poderíamos melhor entender a configuração de edifícios portuários e de estradas de ferro, gasômetros e armazéns, prédios de administração pré-fabricados em ferro, hospitais, escolas e capelas, os quais, à partir das grandes exposições internacionais em países de avançada industrialização, cobriram o mundo colonial? Corno poderíamos entender de outra forma a presença de Barry Parker. em São Paulo, tentando aí aplicar o modelo da cidade-jardim inglesa? Ou a introdução dos princípios da arquitetura e do urbanismo do capitalismo monopolista de Estado, por meio de Warchavchic e Le Corbusier? Ou, ainda, da configuração inerente ao imperialismo transnacional, sob forma de bancos, hotéis de alto luxo, casas-garage e supermercados?

Como poderíamos entender melhor, ainda, o fato de os modelos da configuração urbana das repúblicas populares do mundo pouco industrializado terem sido buscados nos países em busca do socialismo e não nas intumescidas megalópoles do sistema capita-lista em decadência socioeconômica?

Para melhor entendermos as relações entre a configuração urbana e o desenvolvimento da produção material que a solicita e a produz, é necessário, também, considerar a produção espiritual da sociedade. A produção espiritual, dedicada à produção de ideias, não constitui uma forma isolada e independente de produção, dentre as relações com a produção material, como duas formas da mesma produção. Assim fica mais fácil compreender a configuração dos assentamentos humanos, como produzida para e por meio do processo de produção da sociedade e do modo de vida dos homens.

A produção espiritual ocorre por meio de atividades tais como a religiosa, a moral, a política, a filosófica, a científica e a artística. Diferentes das da produção material, essas formas ganham a função específica de desenvolver a consciência, ou melhor, uma determinada forma de consciência social. Por produção espiritual não designamos tudo aquilo que é desenvolvido sob a forma de consciência, mas somente aquilo que é criado por grupos específicos de pessoas, dentro de um sistema social de instituições, com a finalidade de desenvolver o espiritual. A consciência intencionalmente produzida se distingue daquela que surge em ligação à produção material. Comum a ambas as formas de produção é a criação de relações sociais. Na produção material as relações são, predominantemente, ligadas a coisas, enquanto que na produção espiritual são mais ligadas a ideias. As ideias se apresentam como a correspondência mental das relações reais entre os homens e as coisas.

Por que é que se dá uma divisão entre as formas específicas da produção material e da produção espiritual. Numa determinada fase do desenvolvimento histórico, o homem começa a produzir mais para os outros do que para si mesmo, o que dá origem à mer-cadoria e ao valor de troca, bem como múltiplas relações sociais. O trabalho, que se limitara à condição de produção para uso próprio, ganha caráter social. Ao mesmo tempo em que se dá uru aumento das relações entre os produtores, dá-se, também, um distanciamento dos indivíduos entre si. O indivíduo é alienado do conjunto de relações e perde a possibilidade do domínio consciente das mesmas. Em face de tal situação apresenta-se a necessidade da reprodução mental dessas relações, de modo a poderem participar da consciência, agora impedida de basear-se, simplesmente, nas informações da prática imediata da vida.

A intelectualidade surge como um segmento social específico, em função da distinção entre produção material e produção espiritual. Aqueles produtos do pensamento — lendas, mitos, crenças, etc. — fixados nos sistemas de símbolos e comportamentos que eram comunicados pelas aptidões do indivíduo — lembrar, falar, ouvir e organizar visualmente — passam a ser objeto de profissões específicas. Ao mesmo tempo, as relações sociais tornam-se independentes, sob formas que influenciam e são influencia-das pelo distanciamento dos indivíduos entre si.

A alienação dos indivíduos, em relação às múltiplas relações do crescente processo de produção pode dar a impressão de unia maior liberdade individual. É essa impressão que está na base das diferentes conceituações do liberalismo. Uma análise mais profunda mostra, no entanto, que a alienação do indivíduo para com o processo de produção, na realidade, é expressão de crescente dependência das pessoas entre si, exigindo novas formas de consciência quanto à totalidade. Essa consciência, bem como as relações por ela refletida, tornam-se cada vez mais estranhas às experiências vivas das pessoas. O pensamento abstrato liga-se à passagem para relações abstratas, entre as quais as que se dão no comércio e nas transações financeiras constituem um bom exemplo. As novas formas de relações substituem os contatos pessoais c mesmo uma boa parte de nossas relações com os objetos mais imediatos. Por intermédio das diferentes formas de consciência social, a sociedade procura compensar a falta de convivência e comunhão dos indivíduos. A consciência social torna-se, no capitalismo, um privilégio e resulta numa atividade exercida por tipos específicos de profissão.

Independente de pertencerem à classe superior ou de trabalhar a serviço da mesma, tais pessoas pensam pelas outras no que diz respeito a diferentes áreas do trabalho e do conhecimento. As classes superiores controlam, por intermédio de seus representantes ideológicos, a vida espiritual da sociedade no sentido de manter o sistema reinante. O papel da atividade espiritual não se limita, entretanto, a servir a uma determinada classe social. A consciência social, que resulta em trabalho espiritual, constitui a correspon-dência mental das necessidades que todos os indivíduos têm, uns para com os outros. Dessa forma, o trabalho espiritual preenche uma função social fundamental quanto à alienação dos indivíduos.
Os urbanistas do capitalismo agem como representantes dos demais indivíduos, em face das relações de que se viram privados no campo da arquitetura. Eles procuram satisfazer as necessidades espirituais e sociais dos indivíduos nesse setor específico. Se o seu trabalho é dirigido por interesses de uma certa classe social é, por outro lado, aplicado às necessidades de todas as classes. A produção do urbanista ganha, assim, um significado universal, expresso, em relação a interesses específicos, com traços universais no trabalho particular.


A qualidade da configuração urbana não existe fora de sua determinação quantitativa

Tudo aquilo que faz do ser e do fenômeno aquilo que eles são, o que os distingue de todos os demais seres e fenômenos, constitui a qualidade dos mesmos. A qualidade se expressa em propriedades. Uma propriedade caracteriza o objeto ou o fenômeno somente sob um aspecto, enquanto que a qualidade traduz a sua totalidade. Durante o modo de produção capitalista, os produtos que foram imaginados em função de seu valor de uso são transformados em mercadorias carregadas de valor de troca. A busca da qualidade, ou seja, de satisfazer todas as propriedades da totalidade, entra em contradição com a necessidade de repetição, de uniformidade, de rapidez de produção.

Querer ver a produção material em contradição com a espiritual explica a vontade de pôr a qualidade da arquitetura em contradição com somente algumas de suas propriedades. Somente alguns lugares são aprovados como arquitetura. Os demais são caracterizados como sem interesse arquitetônico. Analisando melhor a produção dos lugares, notamos, no entanto, que a relação existente entre as mudanças quantitativas e as qualitativas tende a resultados diferentes, dependendo do direcionamento: capitalista ou socialista.

O capitalismo estimula uma crescente diferenciação entre trabalho corporal e trabalho mental, entre produção material e produção espiritual, entre quantidade e qualidade. O desenvolvimento dessa contradição está submetido à tendência do capitalismo de também forçar a produção espiritual a, principalmente, produzir mercadorias com predominante valor de troca. Aquela atividade que persiste em se dedicar a produzir valor de uso fica cada vez menor numa produção espiritual em contradição qualitativa com a produção material. O trabalho intelectual é posto em contradição com o trabalho corporal. O trabalho espiritual tem a sua natureza adulterada e o seu caráter concreto é transformado em abstrato.

Quando um intelectual quer produzir qualidade, encara com desinteresse as necessidades e as exigências dos trabalhadores da produção material. Quando os trabalhadores da produção material decidem-se por trabalhar sob suas próprias condições, entendem o desejo de qualidade dos intelectuais como urna forma secundária de trabalho. O projeto do urbanista torna-se estranho ao lugar e à espacialidade que se destina. Desenhos, normas e especificações tornam-se algo em si mesmo, passível de aplicação em regiões e países os mais variados.

Quando o capital permite ao intelectual um trabalho com motivação social, dando sua contribuição efetiva ao desenvolvimento histórico, isso se dá às custas da qualidade do seu trabalho, ou seja, justamente daquilo que proporciona ao mesmo a sua condição de trabalho intelectual. Dá-se às custas de propriedades tais como individualidade, autonomia, realização pessoal e significação histórica.

Nos países capitalistas, muitos intelectuais procuram resolver a contradição entre a produção material e a produção espiritual por meio de um posicionamento de vanguarda. Como planejadores progressistas, querem estimular o desenvolvimento histórico limitados à própria área de atividade e de conhecimento profissional. Enquanto a sociedade capitalista não passa à condição de sociedade socialista, tal desenvol-vimento não pode, no entanto, ser outro que não o desenvolvimento da sociedade capitalista. Engajar-se na transformação da Sociedade exige mais do que um engajamento meramente profissional. A vanguarda dos intelectuais, dos artistas e dos trabalhadores culturais é forçada a aproximar-se da vanguarda revolucionária. A vontade, então, de fazer do trabalho intelectual uma parte da revolução dos operários, como transformadores reais da produção material, passa, facilmente, a ser o posicionamento dos intelectuais, tendo corno resultado que a eliminação do capitalismo deixa de ser o objetivo principal.4

O autor tem-se perguntado quais as razões porque tantos colegas de profissão, nos países capitalistas em que viveu, limitam a sua ação progressista a uma dialética do projeto. Primeiro, o autor pensou encontrar a resposta, ligada à chamada autonomia ar-tística e àquela realização pessoal que a materialização de um projeto de arquitetura proporciona. A experiência em países socialistas fez ver, no entanto, que os motivos são bem mais profundos. Os intelectuais progressistas dos países capitalistas caracterizam-se por não duvidarem da conveniência de se organizarem profissionalmente, tendo como objetivo o desenvolvimento social. Mas raramente reconhecem o contraditório, em atribuir ao trabalho intelectual um papel precípuo, segundo regras e leis que os distanciam de urna práxis social e concreta. Pretendem combater o capital — o que implica combater as formas históricas do trabalho concreto através das quais se manifesta — e ao mesmo tempo aprovar a divisão do trabalho material e espiritual, em sua forma mais refinada: limitar-se ao agrupamento em escritórios, escolas superiores e associações profissionais especificas.

Uma outra tendência dos urbanistas progressistas dos países capitalistas é a de se contentarem em configurar artisticamente soluções alternativas para a habitação e os assentamentos humanos, com pretensão a transformações de caráter social. Lutar por urna melhor arquitetura implica, no entanto, também lutar por um socialismo com capacidade de passar de propostas artísticas individuais para uma arquitetura de ampla praxis social. A experiência específica pessoal da arquitetura é transformada, então, em critério social reinante que reconquista a unidade da configuração dos assentamentos pré-capitalistas, mas num plano mais elevado c desenvolvido: o do socialismo.

Para muitos dos arquitetos progressistas da sociedade capitalista, a solução dos problemas da humanidade apresenta-se como a mais sutil e desenvolvida expressão de seu próprio problema: o mundo do porvir é imaginado permitir a liberdade espiritual que constitui a riqueza mas também a miséria dos intelectuais da sociedade capitalista. Creem ver, na revolução proletária, aquela força material capaz de concretizar seus próprios sonhos e valores. A luta do intelectual progressista contra o sistema capitalista transforma-se, facilmente, numa luta contra aquilo que parece contrariar as suas moti-vações artísticas e intelectuais pessoais. Enquanto não conscientizar-se de que essa sua oposição a tudo aquilo que pode por em risco sua posição como trabalhador espiritual exclusivo, o seu posicionamento progressista ganha assim uma dimensão conservadora.5

Após a substituição da democracia burguesa pela democracia popular, na transição para o socialismo, sobrevivem muitos velhos conceitos sob forma de idealismos, interpretações religiosas e ideologias de classe média. Esses resquícios conceituais misturam-se às espontâneas conclusões do dia a dia, antes que elas sejam melhor relatadas. Para que o saber do intelectual e o conceito extraído do dia a dia do operário ganhem validade cientifica a favor da classe operária, faz-se necessário o esforço conjunto de ambos, no sentido de eliminar aquilo que separa a produção espiritual da produção material. Um primeiro aspecto essencial desse trabalho comum é reconhecer corno direção ontológica preferencial aquela que vai da produção material para a espiritual, em semelhança à que vai do objeto para o sujeito. Reconhecer isso implica reconhecer, também, que a mudança radical realizada pelo proletariado, das condições de propriedade do processo de produção, constitui o aspecto central da transformação espacial e temporal da cidade.

Tendo em vista poluição, tráfego intenso c barulho, fábricas e oficinas são frequentemente vistas corno uma presença incômoda nos assentamentos humanos. Mas todos nos reconhecemos que a indústria pertence à cidade e constitui uni fator indispensável para o seu desenvolvimento. Engels fez ver que em cada fábrica pode-se encontrar o gérmen de uma cidade. É a forma privada de propriedade capitalista que acentua os aspectos negativos das fontes de produção. É a forma privada de propriedade que explica por que as cidades são rodeadas de assentamentos marginais qualitativa-mente inferiores aos assentamentos da população proprietária. A propriedade social dos meios de produção e as formas de planejamento econômico próprias às democracias populares fazem da configuração da cidade uma parte do desenvolvimento nacional. Um fato que não elimina a necessidade de análises profundas de outros condicio-namentos tais como: fontes de energia, rede viária, disponibilidade de mão-de-obra e equilíbrio ecológico. A configuração da cidade coincide com condicionamentos que resultam da eliminação da propriedade privada dos meios de produção.

Nos países governados por regimes trabalhistas tem-se considerado, por exemplo, que o prazo gasto no percurso entre a moradia e o local de trabalho não deve exceder ao de uma hora de relógio. Imaginem a consequência disso na configuração de uma cidade quanto a vias e formas de transporte coletivo.

As ideias do reformismo, quanto à configuração dos assentamentos humanos, afastam da atualidade socioeconômica a verdade sobre a luta de classes. Contrapropõem a teoria da colaboração de classes, que submete o proletariado à burguesia, aludindo a uma futura integração do capitalismo ao socialismo. Aos instrumentos próprios das classes obreiras e permitido o direito de existência, mas desestimulado, na prática, o de participação nas decisões sobre a configuração urbana. A ação de tais instrumentos — partidos e associações obreiras — é desviada para aspectos colaterais da luta de classes, cujo objetivo principal é a substituição do capitalismo pelo socialismo. A questão da propriedade, que é também uma questão relativa ao poder na sociedade, não pode ser reduzida a um principio de justiça social para uma revolução econômica futura e distante, que segundo Benévolo e os que pensam como ele parece poder ocorrer sem a luta atual das classes obreiras pelo direito de participação nas decisões sobre a configuração de seus locus standi.


A cidade como o lugar da História

No livro O Manifesto do Partido Comunista, Engels e Marx mostram ser o proletariado a única classe revolucionária. O proletariado torna-se a força material social capaz de transformar as condições de propriedade dos meios de produção como condição da transformação e do desenvolvimento da sociedade como um todo. Outras classes sociais também se opõem à burguesia. Os segmentos intermédios, o pequeno fabricante, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês, também combatem a burguesia, mas fazem-no somente para garantir sua existência como classe média, pois são conservadores. No Manifesto do Partido Comunista são caracterizados, até, como reacionários, em seu esforço por fazer a História girar ao contrário. Tornam-se revolucionários quando reconhecem sua transição inevitável para a ação proletária assumindo uma posição favorável à classe operária.7

Isolando o planejamento da configuração urbana do conhecimento da transformação objetiva do mundo, e limitando-o aos domínios da produção espiritual, aliena-se o mesmo do desenvolvimento objetivo da História. A contribuição de Engels e Marx ao planejamento urbano consiste em terem demonstrado o caráter objetivo da espacialidade e a condição objetiva da temporalidade no período industrial: o caráter revolucionário do proletariado. Se o planejamento urbano não considera esse fator de transformação, não levará mais longe que a uma proposta idealizada de unia momentânea situação da cidade. Limitado à conformação dos edifícios e seus interstícios, o planejamento urbano transfere o conteúdo humano e social da cidade para um plano abstrato e mal definido. Por mais criativos e organizativos que tais planos sejam não con-seguirão evitar o conflito entre os lugares construídos e a dinâmica inerente à materialidade social da cidade.

Além dos textos de Engels sobre .4 questão da habitação e O Manifesto do Partido Comunista, a sua crítica às teorias de Feuerbach, na qual analisa, com Marx, A Ideologia Alemã, são de fundamental importância para um melhor compreensão de como viu a problemática da cidade.8 Nesse texto, Engels e Marx mostram que o interesse do indivíduo em relacionar o seu trabalho específico com a produção maior da sociedade, não decorre da vontade pessoal do urbanista. A transição para o trabalho socializado na cidade obedece a leis objetivas, independentes da vontade individual de profissionais específicos do planejamento urbano. Marx e Engels constataram ser a cidade o lugar da História, sendo nela também que a burguesia se desenvolve e, durante seu período como classe progressista, desempenha um papel revolucionário. Viram, do mesmo modo, que é na cidade que surge o proletariado e aí desempenha o seu papel histórico de criar as condições para o surgimento e a consolidação do socialismo. Constataram ainda a tendência histórica de serem eliminadas as contradições entre o trabalho material e o espiritual, bem como entre a cidade e o campo.

Quando Marx e Engels reconhecem o que é próprio à cidade, não a veem como vitima de uma inevitável dissolução que só poderá ser compensada por uma revolução econômica futura. A partir do enfoque materialista dialético e histórico, compreendem a cidade corno expressão de urna ordem que foi criativa e organizadora, mas na qual muito tem de ser destruído para ser superado, em direção a conflitos cada vez menores entre o corpo construído da mesma e a materialidade da sociedade. Marx e Engels não propõem urna nova ordem abstrata em substituição. A cidade é vista em seu processo de desenvolvimento como parte de um problema maior: a passagem da sociedade para a condição de sociedade sem classes antagônicas. Quanto maior for a participação dos instrumentos próprios às classes obreiras no processo de decisão da configuração urbana menores serão os conflitos entre o continente construído e a materialidade social da cidade.

A grande contribuição do marxismo ao conhecimento sobre os assentamentos humanos é a constatação de que a configuração dos mesmos, à partir de modelos de situações idealizadas, tem de evoluir para um configuração baseada no conhecimento da trans-formação da cidade. O conhecimento da transformação urbana implica evoluir da posição de relacionar a cidade a planos definitivos — mas na realidade ocasionais quanto ao conteúdo social — para uma crescente ação coletiva na qual o conteúdo social é considerado em sua mudança para a condição de sujeito do planejamento urbano.


A contradição entre o social-realismo e o vanguardismo idealista, quanto à configuração urbana

Um terceiro aspecto fundamental quanto à necessidade de trabalho conjunto de intelectuais e operários é o fato de a divisão da produção, em produção material e produção espiritual, também separar a consciência e os processos de conscientização, dos atos externos ao pensamento que constituem a sua base e motivo. Essa divisão entre produção material e produção espiritual, entre a consciência e sua base material reflete-se na configuração da cidade. Expressa a tensão entre aquela tendência que quer limitar a cidade a certos aspectos julgados como de interesse e a tendência que quer a cidade inteira corno obra de arte. Todas essas formas de dissociação sofrem modificações dentro do mesmo processo que busca eliminar as formas burguesas de propriedade e que faz com que a produção passe a pertencer a toda a sociedade.

Na medida em que o poder sobre a produção é transferido para os produtores, torna-se possível a integração daquilo que antes se apresentava dissociado. As razões objetivas e as intenções subjetivas tendem a unir-se, na medida em que o trabalho desempenhado pelo indivíduo passa a ser para ele e reflete, em sua consciência, a sua ancoragem social. Essa reconciliação entre trabalho concreto e trabalho abstrato não é obtida se limitada ao trabalho individual. É necessário que o interesse do indivíduo por seu próprio traba-lho seja parte de seu interesse pela produção global da sociedade. A reconciliação entre a produção material e a produção espiritual implica libertar-se da alienação e de dissociações, o que só é possível se toda a sociedade evoluir da condição de objeto do planejamento para a condição, também, de sujeito do mesmo.

Na luta pela substituição da democracia burguesa pela democracia popular, o diálogo do intelectual com o visionário tende a interromper-se. O diálogo passa, cada vez mais, a tratar do existente e do atual, dentro de uma crescente participação coletiva, entre proletários da produção espiritual e da produção material. Juntos em formas socialmente organizadas, lutam pela eliminação daquilo que diferencia a produção espiritual da material. O trabalho em comum nas organizações próprias ao proletariado passa a consi-derar um desenvolvimento concreto real, o qual constitui a verdadeira mudança daquilo que fora um mito e uma esperança. O futuro vai sendo transformado objetivamente em transição para o socialismo real, em conquistas reais, sob participação real e, com difi-culdades reais.

Durante um certo tempo sobrevive a luta entre posicionamentos de vanguardismo e de realismo por parte dos profissionais específicos da configuração urbana. A previsão de um futuro idealizado continua a existir em muitos céticos à participação real num desenvolvimento da sociedade como um todo. Persiste a oposição ao fato da atividade dos profissionais da configuração dos assentamentos humanos sistematizar-se socialmente, dentro de limites a que não estavam habituados. Mas os meios dos quais a classe trabalhadora passa a dispor superam tal oposição graças ao caráter autocorretivo da luta objetiva pelo socialismo. Arquitetos e urbanistas tornam-se, também eles, trabalhadores que se conscientizam da necessidade de meios cognitivos e abrangentes, tais como o partido, os sindicatos, os planos nacionais de desenvolvimento, as diferentes formas de planejamento e orçamento participativo, a análise sistemática dos fenômenos em seus processos históricos, as experiências mais avançadas de outros países que mais longe já chegaram no caminho da conquista e da consolidação do socialismo, e o exercício da profissão sob formas de interesse público.

As complexas tarefas da edificação social — principalmente as de caráter econômico — tornam, segundo Engels, necessária a utilização do aparelho de Estado. Os partidos e as associações especificas da classe operária necessitam exercer o seu poder sobre o Estado burguês para quebrar a hegemonia das classes dominantes e iniciar as mudanças econômicas capazes de assegurar a passagem para uma democracia popular. Fortalecer o aparelho de Estado, também no campo do planejamento urbano, segundo o interesse da classe obreira, constitui unia medida indispensável de combate à burguesia transnacional.

Engels salientou, também, a importância da produção sob formas cooperativas tendo como objetivo a socialização total da produção. Fez ver a necessidade, no entanto, de que o significado dos interesses de associação e de cooperativismo não fosse maior do que o interesse pelos problemas da sociedade como um todo. A análise da aplicação dessas diferentes modalidades de atuação, em favor dos interesses da classe operária, no que diz respeito à configuração urbana, não encontra, no entanto, maior interesse por parte dos teóricos e dos historiadores da arquitetura e do urbanismo, no mundo capitalista. Como Benévolo, eles transferem a mudança revolucionária proletária para um futuro indefinido e ignoram o desenvolvimento processual que leva à mesma.

Substituindo o processo de transformação da materialidade social por um planejamento limitado ao conteúdo edificado da cidade, não é possível um conhecimento maior sobre a razão fundamental tanto da mudança espacial como da mudança temporal da cidade. Não é a crítica marxista, e sim o planejamento idealista, que, em seu enfoque limitado do que seja espaço e do que seja tempo, e atendo-se ao trabalho da produção espiritual, apresenta um vazio quanto à critica da constituição e da configuração urbana.  


Notas bibliográficas:

1 - Ver de Friedrich Engels, Wohnungsfrage, (A questão da habitação), 1872.
2 - Ver de Leonardo Benévolo, Le origini dell 'urbanística moderna (A origem do urbanismo moderno), Editori Laterza, Bati, 1976, pp. 142-192.
3 - Ver de S. T. Meliujin, Las leyes dialéticas dei desarrollo de la materia, La matéria en su unidad, infinitud y su desarrollo, pp. 275-304.
4 - Ver de Alberto Asor Rosa, Lavoro intellettuale e utopia dell avanguardia nel paese dei socialismo realizzato, Socialismo, cittá e arquitetura URSS 1917-1937. Officina Edizioni, Roma, 1971,pp. 215-250.
5 - Ibidern.
6 - Ver de Friedrich Engels A situação da Classe Operária na Inglaterra, o capitulo: "As grandes cidades." Edições Afrontamento, Porto, 1975.
7 - Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, O Manifesto do Partido Comunista.
8 - Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, A Ideologia Alemã, o trecho sobre Feuerbach.  

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

UNIVERSIDADE & REGIÃO & ALIENAÇÃO CULTURAL


Aula inaugural do ano letivo de 1961 na Universidade da Bahia, proferida no auditório da Reitoria, a 1º de março de 1961, pelo Professor Adjunto Heron de Alencar, da Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia.  

Heron de Alencar –  Intelectual orgânico, militante do Partido Comunista Brasileiro;  Condicionado a exílio em 1964 vindo a falecer em 1971 sem ter sido anistiado. Médico obstetra;  Livre-docente em Filosofia da Universidade da Bahia;  Professor de Literatura Brasileira da Universidade Sorbonne em Paris;  Vice-reitor da Universidade de Brasília durante a gestão Darcy Ribeiro;  Fundador do ensino de Letras/Literatura no Instituto Central de Artes da UnB;  Pesquisador das obras de José de Alencar e de Machado de Assis;  Consultor junto ao arquiteto Oscar Niemeyer para a elaboração da proposta de arquitetura original da UnB;  Participou ainda da equipe de comunistas brasileiros exilados na Europa em convênio com o governo da Argélia em apoio à Reforma Universitária daquele país.


Senhoras e Senhores:

A honra que me foi generosamente conferida, de pronunciar esta lição de abertura do ano escolar na minha Universidade, após tantos anos de ausência, não se explica, a meu ver, senão por dois motivos:

a) pelo desejo de prestigiar àqueles que, ainda não tendo atingido, do ponto de vista burocrático e administrativo, a última etapa da carreira de professor, nem por isso deixam de ser fiéis à vocação ou profissão a que desde cedo se entregaram. E por entender desse modo é que, desde agora e no inicio desta lição, quero agradecer a homenagem que se pretende prestar a nós, os livres docentes desta Universidade;

b) o segundo motivo — e não vejo porque escondê-lo ou omiti-lo — seria a curiosidade de ouvir a quem, tantos anos ausente, regressa de uma experiência universitária num dos centros de ensino e cultura de maior tradição na história do Ocidente.

Se me procuro explicar a minha presença aqui, neste local, neste instante e nestas circunstâncias, é porque desejo me situar em face da responsabilidade que me foi deferida. Dela não quero nem pretendo fugir. Ao contrário, até. A minha determinação é a de esgotá-la ao extremo, para que esta minha fala, pretensiosamente batizada com o nome de "lição", possa revestir-se das características de uma conversa informal, porém aberta e franca corno deve ser a permuta de ideias entre homens que pensam o que dizem e dizem o que pensam.

Professor de Literatura, não pretendo falar de Literatura. Livre-docente e Professor Adjunto da minha Faculdade de Filosofia, também não é das reivindicações específicas e particulares a essa condição que pretendo falar. Nem mesmo da Universidade francesa que vi — a não ser o estritamente necessário para dizer como essa experiência me fez passar a ver a Universidade brasileira. Disposição que talvez desaponte muitos dos que aqui vieram curiosos de saber como estão lá as coisas, na atitude compreensível mas nem por isso menos nociva de alienação cultural que adiante tentarei discutir. Julgo ser mais oportuno e sincero se tentar pensar alto uma série de problemas que me preocupam desde o início mesmo da minha experiência de professor estrangeiro na Sorbonne.

O primeiro desses problemas, de natureza estritamente pessoal, foi o duplo choque que senti ao aproximar-me da realidade europeia e ao distanciar-me da realidade brasileira. Não exagero nem me ponho em atitude falsamente intelectual se acrescentar que data dai, do momento da consciencialização desse choque, o desaparecimento de uma certa euforia que eu carregava como ilusão de felicidade e bem-estar.

Jamais me ocorrera pensar que o contato direto com os sistemas europeus de vida cole-tiva me arrastasse à aventura de uma total revisão de conceitos e preconceitos, de noções e ideias que eu supunha umas pouco variáveis e outras definitivas.

Por outro lado, eu também estava longe de pensar que, um dia, a perspectiva da dis-tância me faria sentir e ver que a minha ideia do Brasil, de alguns aspectos e fenômenos brasileiros, não tinha muita base real, concreta:

— ou era uma ideia que não se fundamentava em fatos ou se fundamentava em fatos mal interpretados, deturpados por uma visão perigosamente otimista e mesmo ufanista da realidade brasileira e de seu processo histórico;

— ou era uma ideia recebida por herança, como esses antigos e belos retratos de antepassados com a aura que os acompanha, que a família e a escola nos impõem desde cedo, por intermédio das primeiras lições de história e de cultura cívica: Era, enfim, uma ideia que tinha quase o misterioso prestígio de uma "verdade absoluta". Melhor ainda: era uma ideia que participava da natureza do mito.

Essa visão mítica da realidade brasileira, que eu carregava em mim, não me permitia que eu objetivamente me aproximasse — ou me afastasse — da verdadeira realidade, para estudá-la e conhecê-la. Era uma fatalidade histórica, que eu e os da minha geração deveríamos aceitar sem maior exame. O máximo que se nos permitia era lamentá-la, como quem lamenta o irremediável. No que me concerne a mim, pessoalmente, a minha atitude era semelhante àquela atitude do personagem de Graciliano Ramos, em Caetés, aquele humilde intelectual de província do interior que, ao final da história, dando-se conta da ausência de supostas diferenças existentes entre ele, intelectual, e o resto da pequena comunidade alagoana, deseja concluir que, no final de contas, ele também não passa de um selvagem, de um caeté, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora, consequência dos 400 anos de civilização, outras raças, outros costumes. Mas, apesar desse pensamento, o narrador concluirá a sua história dizendo, com a melancolia e o desencanto de quem, por fim, começa a se conhecer a si próprio e aos outros:

"Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas, no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram.

Ateu? Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que logo morrem, ídolos que depois derrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra ..."

A modificação dessa atitude constitui todo um longo e penoso processo de crise, de con-flito, a partir daquele duplo choque a que me referi ainda há pouco. Não receio empregar aqui expressões como crise e conflito, para definir um estado de espirito do qual ainda não me libertei. Para tentar traduzir fases de uma experiência que ainda não se completou, e eu espero não se complete nunca. Não sou nada original quando digo que é precisamente a noção de conflito que caracteriza a condição humana real, no mundo de hoje em dia. Sei — e de que modo sei — que não é nada fácil nem cômodo tomar consciência dessa condição, aceitar e afrontar esse estado de espírito, que é feito de inquietação e mesmo de angústia. Por outro lado também sei que esse ponto de vista contraria a perspectiva clássica e, sobretudo, vai de encontro ao ponto de vista da filosofia racionalista. Mas a minha heresia, se heresia existe, é perdoável: não sou filósofo e, muito menos, filósofo racionalista. Sou um simples e modesto professor universitário, em grande parte improvisado e autodidata, que se viu um dia, entre surpreso e amedrontado, compelido a pensar por contra própria, obrigado a dizer a sua opinião — e não a opinião de outros — sobre certos aspectos e fenômenos do seu contexto social, político e cultural. De duas uma: ou eu passava a pensar e a dizer, em lugar de repetir o que outros bem ou mal já haviam dito, — ou eu assumia atitude igual à daquele engenheiro que, tendo de construir uma estrada, e amedrontado em face da tarefa e do esforço de afrontamento com o terreno, com os rios e com os homens que deviam auxiliá-lo, se refugia na embriaguez exclusiva de seus cálculos puros, abstraindo-se do imediato, do real, do concreto.

Não ignoro que o conhecimento racional, a elaboração e o jogo de conceitos constituem elementos fundamentais do processo normal e indispensável do espirito humano. Mas, também não ignoro que o verdadeiro engenheiro será aquele que, servindo-se da álgebra e de abstrações matemáticas ainda mais ousadas, procure melhor conhecer os dados concretos da estrada que vai construir; do mesmo modo que nós, o comum dos mortais, devemos ex-trair da realidade contextual em que vivemos — e que pretendemos modificar e melhorar — os conceitos que nos ajudem a conhecer e a modificar essa realidade.

Para nós, professores universitários, é ainda mais urgente e indispensável esse constante retorno ao real, essa referência permanente e constantemente renovada aos dados imediatos do concreto. Pois essa condição concreta — essa situação existencial, para usar uma expressão em moda — é que é a nossa, por oposição à condição de anjo. E eu estou longe de cometer a injustiça de pensar que algum de nós aspire a assumir a condição de anjo.

Não sei se o primeiro em ordem cronológica, mas, seguramente, o mais grave dos meus conflitos interiores, foi o resultante do meu contato com o sistema universitário francês e as reflexões que, a partir dai, passei a fazer em torno da Universidade Brasileira.

O que de pronto e de logo me chamou a atenção foi urna espécie de febre reformista em todos os setores daquele sistema. Nos gabinetes de trabalho, nas salas de aula, nos corredores sombrios ou nos frios anfiteatros da minha veneranda Sorbonne, — onde tanto aprendi e a que tanto devo — uma pesada atmosfera de reivindicações e de reforma nunca deixou de existir desde que ali penetrei, com a minha timidez e a minha humildade de provinciano e estrangeiro. A medida em que, pouco a pouco, me adaptava a um sistema de ensino e de trabalho tão diferente do nosso — e incomparavelmente mais eficiente do que o nosso — eu ia me apercebendo do sentido e do alcance de certas reivindicações reformistas de professores e alunos. Tive a feliz oportunidade de acom-panhar de perto toda a campanha de que resultou a Reforma contida no decreto de 6 de Janeiro de 1959. Se faço referência ao fato, neste instante, não é para analisar a reforma em si mesma, mas, simplesmente, para repetir agora a pergunta que tanto me fiz, quando da minha permanência na Europa: porque em todo o mundo, se observa essa febre de reforma da Universidade? Na França, na América, na Inglaterra, em Portugal, no México, no Brasil, até mesmo na União Soviética, as sugestões ou medidas de reforma se acumulam de dia para dia, e o observador mais atento poderá se perder num emaranhado de novos decretos, regimentos e regulamentos. E tudo isso porque?

Aparentemente fácil, a resposta a essa pergunta equivaleria a uma solução para a crise da Universidade como instituição, e eu não me sinto capaz de formulá-la. Mas, isso não me impede, nem a mim nem a ninguém, de avançar hipóteses de discussão, que só análise e estudo demorado poderão confirmar ou infirmar.

A primeira dessas hipóteses seria a de que a Universidade como superestrutura social e como instituição de cúpula não tem atingido os objetivos que lhe foram propostos no mundo moderno. Talvez melhor: instituição tipicamente medieval em suas origens, nascida coma resposta a necessidades imediatas de ordem religiosa ou de Estado, a Universidade perdeu o dinamismo e o cunho de contemporaneidade de que inicialmente se revestiu, para transformar-se pouco a pouco em depositária e transmissora do "tesouro" universal. Em lugar de criar ela passou a preservar o que já estava criado. Mais ainda: em certos casos ela passou a se opor à criação de novos valores e de novas verdades, ela se recusou ao diálogo e à discussão, a fim de não comprometer o "tesouro" de que ela se tornara defensora e guardiã. Com a nova obrigação de formar uma elite baseada no mérito e no valor individuais, que substituísse aquela outra elite baseada em direitos hereditários ou outorgados como favor, ela se anacronizou na preocupação quase exclusiva de transmitir uma cultura "oficial" que, por definição mesmo, teria de desconhecer todo o progresso imediato e recusar toda a renovação de base. Aquela sua outra missão primeira, de elaborar o saber como experiência de saber, de ser uma comunidade de professores e alunos capaz de criar unia cultura contemporânea como instrumento de assimilação e domínio da realidade, essa outra missão se foi perdendo com o correr dos tempos. E de tal modo se perdeu, que chegamos ao ridículo de discutir se a pesquisa é ou não função da Universidade.

Por outro lado, e em consequência desse processo de verdadeiro esclerosamento da Universidade como instituição dinâmica resultou também, o que não é menos grave, um enorme descompasso entre os objetivos e o espirito da Universidade e a atitude do professor universitário. À antiga humildade do homem de cultura, que ele era, substituiu um academicismo por vezes pretensioso e arrogante. Vítima do próprio sistema que ajudou a estabelecer, ele não se deu conta de que, ao repetir verdades "absolutas" ao transmitir uma cultura tida como definitiva, não fazia senão proclamar a morte dessa cultura, negar essas mesmas verdades que pretendia defender como absolutas. A cultura é um processo, e as noções e os conceitos que dela derivam não servem ao homem senão como etapas da sua extraordinária aventura no domínio do conhecimento.

Tudo isso está hoje na consciência de cada professor universitário que se orgulha dessa condição. E é isso que explica a febre de reforma que grassa em todas as Universidades do mundo. Será ilusão e ingenuidade, porém, acreditar que reformas parciais ou de pormenor, como a que ocorreu na França em 1959, possam retirar a Universidade da crise em que ela se encontra. Para dar apenas um exemplo, eu cito o caso da proibição, durante um século aproximadamente, de inserir Baudelaire nos programas de ensino da França; foi só em 1959, no centenário da publicação de Flores do mal, que os tribunais franceses absolveram o grande poeta maldito e foi possível o seu nome figurar nos programas de aula e de exame. Sei do constrangimento de professores de literatura francesa a esse respeito, e entre eles tenho amigos que admiro; mas, tenho dúvida de que a esse sentimento corresponda, por coerência, uma atitude realmente renovadora em face da Universidade; como tenho dúvidas de que ele impeça a repetição do fato com um escritor do século XX.

No caso brasileiro, penso eu, os problemas são de outra natureza. Mas nem por isso me-nos graves.
E nem se diga que a ausência de uma verdadeira tradição universitária no Brasil é um dos elementos fundamentais da nossa crise. Como, de resto, se pretendeu sugerir que o atraso cultural do Brasil era devido a essa mesma ausência de tradição universitária. Nem é tão verdadeira a afirmativa, nem é verdade que somos um povo atrasado e subdesenvolvido porque cedo não tivemos Universidade. O Colégio das Artes da Bahia, no século XVI, conferiu graus e diplomou doutores, só não se transformando em Universidade por motivos políticos. Por outro lado, países como o Peru, o Chile e o México, possuíram Universidades desde muito cedo e nem por isso podem ser considerados mais adiantados do que o Brasil.

Parece-me mais certo reconhecer, em primeiro lugar, que a Universidade Brasileira, apesar dos esforços iniciais em sentido contrário, foi criada e se desenvolveu como um prolongamento do nosso ensino secundário. E isso, em grande parte, graças à Faculdade de Filosofia, como um dos elementos centrais do organismo universitário. Ninguém desconhece que sou professor de uma Faculdade de Filosofia. Acredito poder afirmar que os meus colegas e os meus ex-alunos são testemunhas do amor que tenho à minha Faculdade e da dedicação com que nela me entrego aos encargos que me são confiados. Pretendo dar provas dessa dedicação e desse amor, e do orgulho que sinto em pertencer ao corpo docente da minha Faculdade, ao indicar aqui, com o espirito da mais alta crítica construtiva, o que na Faculdade de Filosofia da Universidade Brasileira me parece mais agressivamente errado.

Não apenas o espírito que a orienta, ou a sua atitude em face da realidade brasileira, mas a sua própria concepção, trazem as marcas do nosso péssimo sistema de ensino secundário. A estrutura da instituição, a organização dos currículos, o enciclopedismo anacrônico dos programas, tudo isso faz da Faculdade de Filosofia, no Brasil, um departamento mais categorizado do sistema do ensino secundário. Nós, os professores, somos repetidores de aulas, esgotadores de programas gigantescos. A massa de leis e de artigos de regimentos, e muita vez a aligeirada e cômoda inter-pretação que deles se faz, pretende sugerir que o trabalho de professor é dar aulas, é repetir aulas. Como se nos fosse honestamente possível dar 18 aulas semanais, sem cair na mais esterilizante e estúpida das rotinas. Por outro lado, aos alunos se obriga a frequência a um interminável número de classes, à memorização de toda uma série de pontos e assuntos sem nenhuma utilidade prática ou teórica, à execução de trabalhos que pouco ou nada dizem como resultado de um labor inteligente de assimilação de cultura e de técnicas de pensamento. Para citar apenas um exemplo, tenha-se em mente o caso da secção de Letras Neolatinas, cujos alunos, ao fim de quatro anos de estudo, recebem da Faculdade a licença para lecionar, no curso secundário, seis línguas e suas respectivas literaturas.

Pior ainda, porém, é o ritmo acelerado com que atualmente brotam Faculdades de Filosofia em todo o país. Mais de 70 já existem no território nacional, e outras estão prestes a ser criadas. Algumas já foram criadas em cidades onde não havia até então o segundo ciclo do ensino secundário. Em ritmo mais lento, Faculdades outras que não a de Filosofia, e mesmo Universidades, vão aparecendo aqui e ali, em cidades sem condições normais para o funcionamento do ensino secundário.

Essa improvisação é um dos males graves da Universidade Brasileira. Até bem pouco tempo, o acesso à condição de elite se fazia normalmente pela aquisição de um título de doutor, de bacharel ou licenciado. Com esse crescimento canceroso de unidades universitárias e de Universidades o problema se agrava ainda mais. Estamos perigosamente improvisando não o formado, mas o formador. Estamos criminosamente improvisando, já não mais o que vai obter o título, mas o que vai conceder o título. É isso o gravíssimo num país, cujo vertiginoso ritmo de desenvolvimento está a exigir da sua Universidade um gigantesco esforço no sentido de aparelhar-se de moco adequado e eficiente para a formação de quadros de técnicos, de professores e de pensador de que o país tanto necessita.

Em lugar disso essa improvisação está fazendo de muitos dos nossos centros de ensino superior uma fábrica de desajustados. Desajustado o aluno, a quem o estabelecimento de ensino superior não orienta nem forma adequadamente para as tarefas da vida profissional.  Desajustado o professor, a quem o sistema de ensino superior — se a ele se pode dar o nome de sistema — não permite o exercício digno e eficiente da profissão, tornando-a, em grande parte dos casos, um mero suplemento de outras atividades mais lucrativas.
Daí, em grande parte, os conflitos que se estão dia a dia multiplicando entre os estudantes, os professores e a administração das Universidades. O fenômeno já foi, aliás, registrado por um professor francês, cujo livro é uma inteligente observação da realidade brasileira. Analisando o fenômeno como uma das resultantes do nosso processo de desenvolvimento econômico, diz o professor Lambert:

"Universidades particulares ou públicas, fundadas apressadamente, estabelecimentos secundários, que são empresas lucrativas, acolhem facilmente a clientela numerosa, porque esta, fiel às tradições estabelecidas pelos Senhores, continua a procurar, sobretudo, o ensino jurídico, ou, mais recentemente, o literário, que se pode adaptar em instalações pouco dispendiosas e pode ser facilmente ministrado por professores improvisados. Estudantes ambiciosos, mal alojados e mal alimentados, ávidos por terminarem os estudos e poderem enfim ganhar a vida, esperam de seus estudos o mesmo prestígio que deles anteriormente auferia a pequena elite rica, mas esperam também os mesmos níveis de vida elevados, que essa pequena elite atinge através da sua fortuna e não dos seus diplomas.

Sem dúvida, o desenvolvimento de novas atividades e a industrialização parcial do país acarretam as necessidades de novos quadros, que justificam o aumento do número de estudantes. Não é, porém, a formação técnica que procura a maioria desses estudantes atraídos pelo prestígio das profissões liberais ou da função, e não será também a formação técnica que poderão facilmente adquirir, pois esta é muito especializada e dispendiosa para que se possa improvisá-la"
.
E mais adiante prossegue o Professor Lambert

"Os estudantes, que imprudentemente se multiplicam, aspiram a transferir-se para o grupo socialmente mais alto, anteriormente constituído pela pequena aristocracia da civilização agrícola, e a beneficiar-se dos mesmos níveis de vida, sem compreender que a sua própria quantidade lhos impede e que, se os milhões de caboclos miseráveis poderiam, não sem sacrifícios, manter no luxo os milhares de privilegiados, já não o poderiam fazer senão muito dificilmente, caso estes passassem a ser centenas de milhares.

Esses estudantes muito numerosos, cujas grandes ambições pesam sobre os ombros do povo, sem que por isto deixem de ser frustradas, constituem um grupo ativo de descontentes, que, nas cidades, estão em ótima situação para observar os contrastes extremos do luxo e da miséria que custam a suportar. Mas, os processos normais do regime representativo não dão oportunidade a esses descontentes de exercer influência sobre a política, porque as massas dão os seus votos aos Senhores.

Os estudantes sentem-se, portanto, grandemente atraídos pelos movimentos revolucionários, de que são muitas vezes os instigadores e aos quais, em vista da sua cultura, podem imprimir alguma ideologia. O fomento de agitações políticas por movimentos estudantis é uma característica das estruturas sociais de transição; é o que está ocorrendo hoje em vários países em processo de industrialização e foi o que ocorreu na Europa do século XIX. As revoltas, às vezes sérias, que se originam no fato de não ter a Universidade escolhido os professores que convinham aos estudantes, de terem os transportes coletivos aumentado as tarifas, e de haverem os teatros, e hoje em dia os cinemas, suprimido os descontos concedidos aos alunos das escolas, bem como de outros motivos mais elevados e desinteressados, ocorreram, no período da indústria-lização, na França ou na Alemanha, como hoje ocorrem na Índia, no Egito ou no Brasil; procuram justificativas no nacionalismo, mas são, antes de tudo, um indício da falta de desenvolvimento econômico. É uma fase da evolução política, que termina com a educação e a organização do proletariado".

Embora não subscreva inteiramente a interpretação do ilustre professor francês (por considerar que em alguns casos ela aplica à realidade brasileira raciocínios elaborados pela observação da realidade europeia — multiplicação imprudente de alunos, correlação fatal entre o aumento do número de estudantes e a necessidade imediata de formação de quadros técnicos, os processos normais do regime representativo funcionando como obstáculo à influência dos descontentes, etc., etc. — embora, repito, não subscreva inteiramente a interpretação do ilustre professor francês, não posso deixar de reconhecer que, no seu conjunto, ela apreende e explica certos aspectos da vida brasileira como poucos o fizeram até agora. Apesar disso, porém, estou sinceramente convencido de que, no caso brasileiro, os conflitos por ele enumerados. resultam mais de equívocos, de má colocação de problemas básicos, do que de causas profundas e irremediáveis. Penso mesmo que só uma ação conjunta de estudantes, professores e administradores poderá impedir que se agrave a crise da Universidade Brasileira. E só uma convergência dessas três forças será capaz de conduzi-1a ao encontro de si mesma, como expressão da nossa realidade e como resposta às necessidades do nosso desen-volvimento.

Acredito — e esta é uma convicção que alimento desde há muito tempo — que um pri-meiro e eficiente passo nesse sentido seria uma ampla e enérgica campanha em favor da regionalização da Universidade Brasileira. Não é este o momento para entrar nos pormenores de um projeto aparentemente tão ambicioso. Mas não é nada inoportuno lembrar aqui que o sentido regional do processo da civilização brasileira está a exigir de cada um de nós, aluno, professor ou administrador, demorada reflexão sare a necessidade de regionalização da nossa Universidade. Lembra Gilberto Freyre que "o estudo das condições sociais, ou antes, da história social brasileira, parece indicar que no Brasil, como em outras nações não menos vastas e complexas, deve permitir-se a cada um particular lealdade à sua comunidade básica: região, área ou província. Não importa que nos seus apegos transnacionais, o homem vá tão longe quanto se possa imaginar e torne-se um verdadeiro cidadão do mundo. Sua condição de membro de grupo primário local parece, ainda assim, necessária para a sua saúde pessoal e social".

Temos tido receio de ser regionais pelo medo de sermos considerados provincianos. Sei que isso não é de estranhar, num país em que o complexo colonial determinou as atitudes de europeização mais ridículas. E de americanização as mais inqualificáveis. Raros, até bem pouco tempo, teriam a coragem que teve o mais universal e o mais brasileiro dos nossos poetas contemporâneos quando, há mais de trinta anos, escreveu:

"Quem me fez assim foi minha gente e minha terra.
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa".

Essa recusa de alienar-se culturalmente — e desse modo e não de outro é que se deve entender os versos de Carlos Drummond de Andrade — é um exemplo a ser urgentemente seguido. Particularmente pela Universidade Brasileira. Temos, sem dúvida alguma, ainda muito que aprender com os países mais desenvolvidos. Mas daí a querer imitá-los, a querer copiar-lhes soluções que não se adequam senão aparentemente à nossa realidade problemática, há todo um abismo que já é tempo de evitar. Ou temos a coragem de ser o que somos, de assumir a nossa condição de brasileiro e transformá-la numa condição de povo desenvolvido e de cultura própria, ou continuaremos a ser essa sociedade inautêntica e alienada de que nos fala Guerreiro Ramos, "induzida a ver-se a si mesma segundo uma ótica que não é a própria, modelando-se conforme uma imagem de que não é sujeito.

"Se há um setor de atividades em que o Brasil pode orgulhar-se de não padecer de alie-nação cultural, de tê-la superado, é — e na assertiva ninguém veja qualquer laivo de uma irreverência, que não está em meus hábitos, não se coaduna com a minha formação nem com a solenidade do ambiente — o futebol. Que poderia chocar se mencionado numa Universidade de um país onde esse esporte não tivesse a expressão atuante que tem entre nós, onde não encerrasse as lições de autenticidade e afirmação que encerra. Que me perdoem os mais ortodoxos: o que reclamo é a coragem de procurarmos nossos próprios caminhos, é que nos voltemos com a maior atenção para o nosso contexto e dele aproveitemos, aprendamos, sem preocupações com uma ortodoxia que em última análise representa a consagração de padrões intocáveis. O futebol brasileiro deu-nos lições eloquentes. A primeira, a da necessidade de profissionalização em regime de dedicação exclusiva. A segunda, a da planificação da atividade, a procura de um trabalho de conjunto sem a rigidez excessiva que cerceia o talento individual. E por fim, talvez a mais importante, a afirmação de um estilo realmente brasileiro, inconfundível, ao qual sabe manter-se fiel em todos os momentos e circunstâncias.

Se isso foi e é possível ao futebol, com idênticas ou melhores razões deve ser possível a nós, Universidade Brasileira. E um dos primeiros passos nesse sentido, volto a repetir, seria a regionalização da Universidade. Ideia que alimento há tanto tempo, e que há quatro anos tive a oportunidade de debater numa conferência para estudantes brasileiros em Paris, tive agora a alegria de vê-la exposta num dos estudos de Fernando de Azevedo, onde se pode ler :

"Mas, para isto, para que as universidades se transformem a um tempo, em centros de alta especialização intelectual e científica e em focos de irradiação cultural, devem organizar-se de maneira que, servindo à conservação e ao progresso constante do saber humano, possam adaptar-se às diferenças regionais, favorecer a interação contínua dos núcleos culturais e exercer uma ação larga e intensa sare as ca-madas populares. Nada de imutável deve nela existir, nada de fixo e de parado; nada que seja suscetível de constranger a sua evolução ou de submetê-la a padrões rígidos que possam entravar-lhe o desenvolvimento ou o processo normal de adaptação às condições do tempo e aos quadros geográficos e culturais do pais. Não sendo um produto cristalizado, mas vivo, uma "obra histórica", o que lhe poderá comprometer o sucesso é, antes de tudo, a rotina burocrática, o rigor e a estreiteza de fórmulas e o excesso de organização. Ela acompanhará o progresso do pensamento humano na medida em que a sua estrutura e os princípios que a inspiraram lhe permitirem e lhe facilitarem a seleção de novos elementos, a introdução de novas disciplinas e de novas ciências, a instituição de cursos não previstos e ainda a criação de cadeiras, em beneficio ou intenção de especialista, nacional ou estrangeiro, verdadeiramente notável em determinado setor de conhecimento e de investigação."

E depois de enumerar exemplos estrangeiros da antiguidade e da atualidade, situando a tese no Brasil:
"A variedade de quadros geográficos e geológicos que oferecem, em certas zonas do país, extraordinários campos de exploração, no domínio das ciências naturais; as diferenças de culturas regionais que apresentam um rico acervo tradicional, como o humanismo e a arte colonial em Minas ou na Bahia, ou as tradições populares afro-índias, nesse Estado e no Nordeste; a expansão industrial de São Paulo ou as "culturas marginais" no centro-sul, podem refletir no campo universitário, dando origem a "especializações" do maior alcance científico que, diferenciando uma das outras Universidades do país, aumentarão o seu interesse e o seu poder de atração. A cultura, elaborada pelas universidades, mas achegada ao meio imediato e aos seus problemas, não seria por essa forma uma cultura "sobreposta", mas orgânica, assimilada e recriada pelo próprio povo, neste sentido de que a criação de uma nova mentalidade resultaria não só das influências de cima para baixo, mas da permeabilidade da cultura superior às influências de toda a vida social exterior ou subjacente as grandes estruturas universitárias."

Não sei de outra Universidade brasileira melhor indicada para iniciar uma campanha em favor da regionalização da Universidade, que esta nossa da Bahia, a cujos quadros do-centes tanto me orgulho de pertencer. Universidade pioneira em vários setores de atividades, no campo da técnica como no do humanismo — e ai estão o Curso de Geologia do Petróleo, o Laboratório de Geomorfologia, Centros de Estudo de Matemática e Física, o Laboratório de Fonética Experimental, O Museu de Arte Sacra, A Escola de Dança, a de Administração, a Escola de Teatro, os Seminários Internacio-nais de Música, o Departamento de Assistência ao Estudante que representam ativos centros de trabalho, de estudo e pesquisa em grande parte inexistentes nas outras Universidades Brasileiras — esta nossa Universidade, com os elementos de que já dispõe e com as provas de vitalidade e dinamismo que tem dado, pode e deve transformar-se numa autêntica comunidade de alunos, professores e administradores, para a elaboração e cumprimento de todo um vasto programa de estudos e pesquisas regionais que sirva de base a uma planificação do desenvolvimento regional e nacional. Os próprios conflitos de que foi teatro esta Universidade, ressalvados os excessos de falta de respeito e mesmo de pudor de que muita vez se revestiram manifestações coletivas ou relações de pessoa a pessoa — esses próprios conflitos representam a prova mais indiscutível de que esta Universidade, como nenhuma outra das que conheço, é terreno em que o diálogo e a discussão, não apenas se podem manifestar, mas podem e devem ser um dos instrumentos melhores de sua realização como instituição elaboradora de cultura.

O meu otimismo, a esse respeito, vai mesmo ao ponto de pensar que esse movimento no sentido da regionalização da Universidade de, veria ter, como um dos pontos de partida, a criação pela e dentro da Universidade da Bahia, de uma Universidade Internacional de Estudos Brasileiros, de caráter periódico na sua função docente e de caráter permanente na sua função de pesquisa e estudo da realidade brasileira. A estrutura e o funcionamento dos Institutos de Universidade, que tanto serviço prestam quando bem orientados, não poderiam, entretanto, formar o quadro ideal para o florescimento de um organismo do gênero desse que agora proponho como sugestão aos professores e alunos desta Universidade. E muito menos os Institutos de Faculdade, mais limitados que aqueles. Só mesmo a estrutura de uma Universidade Internacional poderia permitir, de um lado a assimilação de quadros culturais que por essa ou aquela razão estão fora da Universidade — e sou também otimista quanto à existência e utilização desses quadros — e, de outro lado, a execução de um programa de elaboração e permuta de conhecimentos, de que tanto carecemos.

Que me perdoem todos os que aqui vieram, pelo tempo que lhes roubei. Pelos lugares comuns que certamente aqui proferi. Pelas verdades demasiadamente conhecidas que aqui repeti. Lembro, porém, aquela minha advertência inicial, de que não vinha pronunciar uma lição, mas, pensar alto uma série de problemas. E isso era importante para mim, nessa fase inicial de retomada de contato com a minha terra, os meus amigos, a minha Universidade, aos quais quero e vou servir com o melhor do meu esforço.